sábado, 17 de maio de 2008

O novíssimo «Os Girassóis» de Rui Herbon

O Escritor Rui Herbon, Prémio António Paulouro 2004, da cidade Fundão, lançou novo livro, dia 7 de Maio, em Lisboa: Os Girassóis, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues que tive a honra de apresentar. É o texto da Apresentação que aqui edito.

«Quem leu os anteriores romances de Rui Herbon já sabe três coisas: sabe que não encontra uma leitura recreativa que se extingue com o fechar do livro; sabe que é convocado para a viagem do texto, para nela se empossar, enquanto personagem; sabe que não faz a menor ideia de quais os caminhos do romance seguinte. Depois da reinvenção do espanto em «Voar como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (Um Filme Português)» e do deambulador e notável «Absinto – a inútil deambulação da escrita», o título que se segue é Os Girassóis.

Inspirado nas famosas telas de Van Gogh, este «Os Girassóis» de Rui Herbon traz-nos um homem de meia-idade à procura da sua imagem, que perscruta o passado para entender as trevas da sua vida, para compreender donde lhe surgiu a agonia que lhe paralisa a existência, outrossim para achar a esperança, como bússola para o resto da caminhada, como o girassol que, agrilhoado à terra, procura, rebelde e irreverente, a luz.

Nada é ocasional neste novo livro de Rui Herbon, como, aliás, é seu timbre. A abrir, numa página, o Atrium, um pequeno texto com um grande ardil, como uma pequena sala de entrada forrada a espelhos que recebe o leitor, para o preparar para as 186 páginas onde ele se pode ver, multiplicado, redescobrir e reinventar.

Para isso, concorre o narrador omnisciente e engenhoso, que se confunde com a voz de Ricardo, a personagem principal, que imprime o tom confessional e intimista, e com lugar para a voz do leitor que se enreda no mal-estar e na espera do homem de 50 anos, pintor fracassado, exaurido na indiferença e tédio do casamento de quase 30 anos, com Sílvia, passando a viver, depois do adultério da mulher, «num quartinho dos fundos, com os seus desenhos e quadros» e um segredo terrível do passado: a atracção incestuosa, mas sublimada, pela irmã Ana, falecida abruptamente há 25 anos, mais declarada por ela em relação a ele.

Mas esta não é a história, ou não fosse do indisciplinado Rui Herbon; esta é apenas a base da história.

Narrativa de encruzilhadas
Este Os Girassóis é uma narrativa sobre uma grande viagem interior com encruzilhadas que se configuram, fortíssimas, na unidade espácio-temporal. É na varanda altaneira, onde Ricardo passa as noites de insónia, que se dá a grande viagem. É dessa varanda, ponto fixo sobre a praça, com Ricardo imóvel, na imobilidade de quem perdeu a esperança, que ele sai e regressa modificado; é nela que ele luta com «aquele olho invisível» que parecia ver-lhe a alma e gritar-lhe a mentira da sua existência, que ele, com remorso, cala. Cabe à narrativa esclarecida dar voz ao silêncio de Ricardo (e voz às nossas varandas de inquietação) para mostrar a verdade, pois, como disse Miguel de Unamuno, «Há momentos em que silenciar é mentir». E o leitor sabe, porque o texto o faz encontrar em si, que o tédio de Ricardo é um tédio agitado que apenas espera o momento para se desamarrar.

Lê-se no Atrium que há pecados «que o homem esconde nos lugares mais ocultos do seu coração, e aí permanecem, aí aguardam» até que uma qualquer palavra casual os evoca e eles erguem-se, «em visão ou em sonho» para nos encararem, num ajuste de contas…

Ajustar as contas com o tempo – desafiá-lo, revolvê-lo, moldá-lo, desordená-lo para o ordenar – é uma marca insigne da escrita de Rui. Realizar o Tempo «em visão ou em sonho» é enchê-lo de construções impressionistas e surrealistas: luz, sombra e movimento, sinestesias que colhem o real, metáforas, hipálages que transferem para os objectos o drama da luta de Ricardo com a memória, isto é, a luta consigo mesmo, expressa no «sofá insano, estoirado e sem préstimo, braços gastos», no qual se senta, para olhar para o exterior, imagens inquietantes resgatadas nos subterrâneos do ser, tudo urdido numa escrita poética arrebatadora e repleta de símbolos, como o pequeno relógio de algibeira, que Ricardo consulta, e que se agiganta no grande relógio, o «farol da memória», que se recorta iluminado no fundo da praça, e que nos catapulta para outras telas, também dum outro pintor famoso: as dos relógios moles de Salvador Dali.
O Tempo é reversível e moldável, prova-nos Rui Herbon, e prova-nos que esse acto de moldar o Tempo exige sacrifício e dor...

O sacrifício da caminhada
Na linha do Romance – ensaio, este «Os Girassóis» traz-nos uma narrativa exploratória sobre a condição existencial. Sempre a contas consigo, Ricardo resgata o passado em registos que amplifica na medida da sua angústia e da necessidade da sua demanda, em fragmentos desordenados, porque a alma humana quando procura não reconhece metodologias, a ânsia não tem programa (também neste sentido, a escrita do Rui é de Verdade, e por isso fideliza leitores).

Na ânsia da viagem surgem: a infância e juventude passadas no Porto; a estada em Paris, para estudo inútil e vida boémia, julgada pelos olhos infinitamente tristes de um prostituta quando se fixam em Ricardo; a passagem por Londres com o eco do som triste de um realejo, e o entendimento de que por baixo dos jardins exuberantes e silenciosos existem outros jardins, as raízes subterrâneas, mais maravilhosas e terríveis; pela guerra colonial de Ricardo numa repartição técnica do exército, em Lourenço Marques, militar sem arma porque ele não era dado a heroísmos.

É também da varanda, com olhar viajante, que Ricardo interpreta o quotidiano: tenta penetrar a vida para lá dos vidros, para lá das cortinas, atenta nas sombras dentro das casas, ou fixa as pupilas na praça, nos homens e mulheres, jovens e velhos, nos que saem do autocarro, regista-lhes os olhos e os gestos, conjectura-lhes as vidas, os caminhos caídos e saqueados, regista os recortes das sombras que a luz desenha, o «odor húmido e vasto» que lhe chega do rio, o silvo potente dos barcos que lhe desata a emoção de um sonho que parte.

A fúria de um temporal permite a renovação do projecto interior de Ricardo, que inclui a visita ao Museu Van Gogh, em Amesterdão, para contemplar o seu quadro favorito: os girassóis; Uma ida em jeito de peregrinação celebradora do sacrifício da caminhada contra a renúncia, de homenagem à luz, tanto mais que só se reconhece plenamente a luz quando se experimentaram as trevas: Van Gogh foi a prova disso, e é-o, também, esta narrativa do Rui. Não se pense, todavia, que o final é fechado; o leitor reconhece a circularidade da procura, do nunca acabado e sempre retomado, o eterno retorno, sempiterna marca de Rui Herbon.

Urbano Tavares Rodrigues diz, no prefácio, que este «Os Girassóis» «poderá tornar-se em breve um livro de culto». Irá juntar-se aos outros livros de culto do Rui, acrescento eu, convicta de que são assim tidos pelos leitores que os souberam ler.»

© Teresa Sá Couto



Nota: Livros de Rui Herbon e os Prémios arrecadados:

«Voar como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (Um Filme Português)», Prémio Eixo-Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa 2002;

«Absinto (A Inútil Deambulação da Escrita)», Prémio António Paulouro 2004, da cidade Fundão; «Eterno Retorno», (não editado), Prémio Afonso Lopes Vieira 2005, da cidade de Leiria, Prémio Orlando Gonçalves 2005, da Amadora e Menção Honrosa no Prémio Alves Redol 2005, de Vila Franca de Xira;
«A Preto e Branco», livro de contos (não editado), Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal 2007;
«Masoch» (não editado), Prémio Maria Matos 2007 de Dramaturgia; «Os Girassóis».

2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado, Teresa, pela magnífica apresentação do livro e por aqui disponibilizares o texto que lhe serviu de base.
Beijinhos
Rui Herbon

Teresa disse...

Obrigada, eu, Rui, pelos teus livros que proporcionam sempre leituras únicas e tão necessárias nos dias que correm!
Um Grande abraço
TSC