quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Prémio Leya para João Paulo Borges Coelho

O Olho de Hertzog é o título do romance do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, vencedor do prémio Leya 2009. O título estará disponível em Março, com a chancela da Caminho, que tem publicadas sete obras do escritor: As Duas Sombras do Rio, As Visitas do Dr. Valdez, Índicos Indícios I. Setentrião, Índicos Indícios II. Meridião, Crónica da Rua 513.2 , Campo de Trânsito e Hinyambaan.
Trago para a ordem do dia, o texto que elaborei sobre o magnífico Campo de Trânsito, livro do qual, incompreensivelmente, pouco se falou.
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Cega-nos a rotina a tal ponto que só quando agitamos freneticamente os braços como duas ventoinhas na esperança vã de recuperar o equilíbrio perdido à beira do precipício nos apercebemos de que o caminho por onde seguíamos não vai dar a parte alguma.
Isto diz-nos João Paulo Borges Coelho no surpreendente Campo de Trânsito, livro do ano passado e do qual, incompreensivelmente, pouco se falou. São doze capítulos como doze pancadas na modorra dos nossos dias, que nos acordam para todas as interrogações existenciais:

- será a vida um permanente campo de trânsito onde gastamos o tempo a desenvolver estratégias de sobrevivência com que iludimos o quotidiano? É esse um lugar que escolhemos ou é ele que nos escolhe, títeres existenciais? Como se sai de uma «interminável e pestilenta espiral»? O que somos além de cansaço depois de tanto caminho percorrido em vão?

Nascido no Porto, mas naturalizado moçambicano, João Paulo Borges Coelho é um dos grandes nomes da Literatura de Expressão Portuguesa. Depois de «Crónica da Rua 513.2 », título anterior e também editado pela Editorial Caminho, o historiador e escritor traz-nos em «Campo de Trânsito» uma alegoria da condição existencial através da personagem J. Mungau - que pode ser qualquer um de nós -, no chão de Moçambique - como pode ser em qualquer chão onde se deixa o sangue, sendo o chão uma metáfora da caminhada.

J. Mungau, homem urbano, é acordado numa noite na sua casa, com pancadas ritmadas na porta que o arrancam ao torpor de uma ressaca. É feito prisioneiro por um agente de nome Bexigoso, levado para uma cela, e depois por um percurso de pó argiloso, espesso e vermelho, como sangue, até desembocar num Campo de Trânsito onde fica a aguardar transferência para um lugar definitivo.

Os três espaços são as bases de uma urdidura original com fortíssima densidade psicológica. Arrancado ao seu lugar, J Mungau deixa de ter nome, e passa a ser um número, prisioneiro 15.6., uma perda de identidade que indicia o caminho da procura de uma nova. Questionando-se sobre as razões da sua prisão, as quais nunca chega a saber, e esperando que o equívoco seja desfeito – como tantos equívocos da nossa vida nunca são desfeitos – o prisioneiro, todavia, vai esquecendo-se dessa interrogação, como quem se resigna às circunstâncias. Também não chegará a um lugar definitivo, o que demonstra que o único definitivo da vida é a morte.Lugar de confluência de pessoas de vidas fragmentadas – que é preciso aglutinar, «cada fragmento uma folha de papel», milhares de páginas dentro de pastas que o Director procura organizar (as páginas e as vidas) –, o presente do Campo de Trânsito conta também com as tensões de outros dois campos: o Campo Antigo e o Campo Novo, o passado e o futuro.

Nessa teia de tempos, sem se encaixar em nenhum, Mungau aprende o poder de alguns objectos – nomeadamente da faca que passa a deter e que vai ser um instrumento do destino –, perscruta as relações que o cercam, observa as diversas estratégias de sobrevivência. Para isso, o texto dá-nos uma galeria portentosa de personagens em interacção, com que se constrói o caos existencial: o Professor do Campo e a estranha Mulher do Professor – uma hortelã que vive no seu retalho de horta fustigando o chão com uma mão de dois dedos, uma tenaz, enquanto o marido divulga o conhecimento entre os prisioneiros –, os prisioneiros, os guardas, os feirantes que vão ao Campo uma vez por mês, o Chefe da Aldeia e a filha casadoira - a Desengonçada Garça -, o misterioso Vendedor de Chá.

No trapézio do destino

O agente Bexigoso acompanha Mungau durante todo o tempo de detenção no Campo de Trânsito. Ele representa a sombra onde se tropeça, a metáfora dos “Bexigosos” que nos barram o caminho. Arrogando-se actor do seu destino, e apesar de todos os equívocos que ele acha não serem da sua responsabilidade, Mungau tenta iludir os limites que o aprisionam e, no horizonte infinito da imaginação, convoca uma plateia para a qual representará com humildade e dignidade, para que ela se condoa, para que ela, cúmplice, seja uma companhia amiga, um conforto. E sonha, ainda que num sonho contaminado pela dureza da realidade:

(...)aos poucos chama novamente o palco e fecha os olhos para que se apaguem as luzes da plateia. A cela tem agora um tecto muito alto. Lá em cima, um trapezista evolui ousadamente agarrado a um baloiço. Risca o ar em curvas largas, subindo quase até ao tecto e voltando a descer. Subitamente, quando acha ter já ganho o impulso suficiente, larga o baloiço, volteia no espaço, estica os braços e finca as mãos num baloiço seguinte até então oscilando vazio como se não tivesse propósito algum, na verdade tendo o propósito precioso de estar ali para que ele possa agarrá-lo e se salvar. Sempre que tal acontece sobe um murmúrio ansioso e a audiência explode numa nervosa salva de palmas. Admiração e alívio é o que significam aquelas palmas.

Durante um tempo o trapezista executa as suas temerárias evoluções, ganhando balanço para largar o primeiro baloiço, confiante de que, pendendo à espera dele, estará o segundo. Até que de uma das vezes resolve olhar para cima e o seu olhar cruza-se com as pupilas brancas do Bexigoso que, na plataforma mais elevada, segura as cordas do segundo baloiço debatendo-se na dúvida se o envia ou não. Dessa troca de olhares vem ao trapezista a certeza de que haverá uma vez em que o maldito não o fará. De que vai tropeçar no ar, agitando as mãos no desespero de encontrar qualquer coisa a que se agarrar. E irá caindo, caindo, enquanto cresce um rumor de aflitas e desencontradas vozes na audiência.Acorda quando embate no solo com violência. É noite.

Campo de Trânsito, João Paulo Borges Coelho; Editorial Caminho, Lisboa, 2007

© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Faz-me lembrar umpouco qa trama de "O Processo" do qual ainda só li a sinopse, do nosso amigo Franz Kafka...


Um beijo

CSD

Teresa disse...

Muito bem visto!!! Não me tinha lembrado de tal...e, já agora, a "Metamorfose" que está nas sinistras e omnipresentes aranhas,e outros bichos e até objectos que enchem este romance de JPCoelho.

realmente...duas cabeças a pensar...;-)))

Beijo
(e obrigada pela companhia!)
TSC