sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Prémio Cervantes 2008 para Juan Marsé

O escritor catalão Juan Marsé foi distinguido ontem com o Prémio Cervantes, o Nobel das Letras espanholas.

Marsé, homem com cara de «pugilista marcado pela vida», como o caracteriza Arturo Pérez-Reverte, nasceu em Barcelona em 1933 e passou a infância e juventude no bairro popular de Gracia. Entre os 13 e os 26 anos trabalhou como operário numa oficina de joalharia. A sua carreira literária começou em 1959, ano em que começou a publicar crónicas em revistas literárias e em que obteve o Prémio Sésamo de contos. Das inúmeras obras publicadas, destaco dois romances editados em Portugal pela Campo das Letras.

Últimas Tardes com Teresa é o título que consagrou o escritor e, embora editado em 1966, chegou a Portugal em 2006, pleno de actualidade, para consagrar também a melhor leitura. Tatua-se no papel a palavra lúcida e poética que testemunha a aventura humana de Manolo e Teresa, dois jovens de mundos distintos, o proletário e o burguês. Atesta-se que a existência é feita de instantes esquinados, dobrados na «loucura dos relógios», num «mundo louco de estupor e desamparo». Personagem central, Manolo Reyes, alcunhado de Pijoaparte – «Há alcunhas que ilustram não só uma maneira de viver, mas também a natureza social do mundo em que se vive» – é um jovem pobre que vive nos subúrbios de Barcelona, que foge dessa condição miserável em busca da riqueza e prestígio social, sonhos projectados em Teresa, jovem universitária rica, por quem se apaixona, como num «derradeiro espasmo do sonho».

A acção decorre na Barcelona franquista, no Verão de 1956, no contexto dos exacerbados movimentos estudantis. Pijoaparte irrompe numa festa de gente fina, entre confetis festivos do arraial de São João, mestre da «grande máscara» que escondia «secretos desvarios», e que o narrador desmonta por inebriantes 371 páginas.

Repleto de «nervos secretos», o romance urde-se com sonhos e futilidades, encontros, desencontros e labirintos, numa vertigem narrativa que desagua no espanto da leitura. Sobretudo, é um romance sobre a fuga do indivíduo de si mesmo. Imperdível!

«Qualquer mulher sentada num bar de alterne à espera de clientes sabe que o comportamento de um homem que perdeu tudo menos a vida é um mistério.». Assim nos é apresentado o soberbo romance Canções de Amor em Lolita’s Club, o título mais recente do autor, editado também em 2006.

Mestre de um realismo inquietante e arrebatador, escrita de densidade psicológica e desenvoltura narrativa, o autor enleia o leitor em 271 páginas de descida às zonas mais recônditas que o ser humano tem e que nem a si confessa. Caminho de indagação e de luz, este, que confirma a asserção de Carlos Pujol: «A nada se pode regressar. Mas temos que regressar para o saber».

O que acontece nas almas ressacadas que se reúnem num bar de putas? Que mulheres são estas para lá da disponibilidade do corpo? Que homens são estes que chegam àquele tugúrio esvaziados de sentido? De que forma o encontro destes dois mundos interiores, igualmente áridos, de «fúria sexual, desamor e solidão», pode ser um conforto ou a confirmação da perda? Há lugar para o amor no meio deste paul, deste lodaçal? Ou a música caribe do Lolita’s Club Bar Musical é apenas um requiem da morte anunciada?

Este romance lembra-nos que a vida é um percurso de arestas angulosas e que a morte coexiste com a vida, antes daquele ponto derradeiro, o da finitude do corpo. Daí o seu carácter imprevisível: o da vida e o da morte. O homem escolhe e o resto acontece. Consoante o caminho que escolher terá de enfrentar as chagas que não previu. Há quem sucumba aos ferimentos dos gumes da vida e, numa qualquer noite sem lua, decida «partir-se em mil pedaços por dentro e por fora».
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Desirée, uma das prostitutas, escolheu e a vida fez o seu trabalho: numa noite, navegando no Alhambra II, na rota Barcelona – Palma, em alto mar, os «seus olhos azuis cravam-se obsessivamente nas negras águas», e atira-se para o abismo. O seu corpo é achado vinte e quatro horas depois, longe do ponto onde se atirou à água, «na espuma dos alcantilhados». Os seus olhos eram agora verdes e a borboleta vermelha e amarela que antes estivera estampada no ombro direito «estava no seu peito esquerdo e tinha as asas cinzentas.». O mar imprevisível tinha feito o seu trabalho. O mar imprevisível faz com que o comportamento dos seus afogados seja, também ele, imprevisível…

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Requiem para D. Quixote, Dennis McShade

Já disponível nas livrarias, Requiem para D.Quixote é o segundo andamento da magistral orquestração de Peter Maynard, o assassino profissional criado por Dennis McShade, autor sombra que escondeu e revelou Dinis Machado, o engenhoso estratega de tudo isto, já lá vão 40 anos. Depois da sua edição em 1967 e da reedição pelo Círculo de Leitores em 1987, Requiem para D.Quixote desapareceu do contacto com o público português, dito assim, pois o livro foi editado na Roménia em 1991, com o título Contractul Crimei.

Depois de Mão Direita do Diabo reeditado em Junho último, este Requiem para D.Quixote – título enigmático para um policial negro – é um hino à «vitória do espírito sobre a matéria», uma homenagem aos sonhadores mortos e aos impotentes na operacionalização dos seus sonhos, e vem consubstanciar o renascimento de Dinis Machado, quando passa cerca de um mês da sua morte (a três de Outubro). E, convenhamos, parece que Dinis continua a jogar connosco o jogo que criou: o jogo da ocultação e da revelação, da verdade e da máscara, da vida e da morte, o jogo da cabra-cega da existência humana.

Escreveu Dinis Machado, enquanto editor dos livros de McShade, em nota que acompanha esta reedição, que o assassino profissional Peter Maynard é a tese e a antítese do autor McShade, porquanto «elogia apenas o homem em acção e pela acção» e, por outro lado, imprime-lhe «os silêncios», «onde há a fala alta de um orador sagrado, o sussurro de uma prece e tudo aquilo que está para lá da franja do mar». Uma dialéctica que faiscou no título anterior e que atinge irradiação máxima neste segundo romance propenso a apurar a psicologia maynardiana. Esta mesma dialéctica configura-se no claro-escuro da ilustração – novamente uma magnífica capa de João Fazenda – que interpreta Maynard com a Beretta, com o perfil humano, o silenciador e a mão direita a negro, em contraste, mas em sinergia com o branco da Beretta e da mão esquerda que coloca o silenciador.

É, ainda, este movimento dialéctico que está na génese destes policiais, tornando-os únicos. A par das urdiduras frenéticas condensadas num tempo muito curto, industriosas, eximiamente construídas e matizadas de humor imbatível, surge o tempo largo da reflexão sobre a condição existencial; é Maynard que, enquanto prepara a sua Beretta olha pela janela e, como se se olhasse ao espelho, observa as pessoas com pressa «a construir as pirâmides»; é Maynard, numa pausa da sua pressa, a construir a sua pirâmide com o vértice bem firmado no «coração secreto da sensibilidade»; é, afinal, um escritor português que, através de um assassino profissional, procura um poema.

Munições para um poema
«A intuição dos curiosos é como a imaginação dos poetas: aparece uma ideia como aparece um verso. Depois, é preciso procurar o poema», diz Maynard dando-nos pistas sobre a construção narrativa, o metódico, não sagaz, mas intuitivo, como faz questão de corrigir, de uma intuição que é «como o bordão do cego: toca nos objectos e transmite-os». Depois, o processo até é simples, genialmente simples, e temos de concordar com Maynard quando diz que Ravel tem razão: «Fez o Bolero com uma repetição incessante de notas, só os andamentos é que mudam». Assim é a vida: «as notas são sempre as mesmas. Só os andamentos é que mudam. E o resto, é um problema de orquestração».

Nesta nova orquestração, Peter Maynard tem para resolver um caso de Caim e Abel. Para reconquistar a sua liberdade profissional – após acontecimentos relatados no «Mão Direita do Diabo» – aceita do Sindicato do crime organizado um contrato para executar Big Shelley, um poderoso chefe da Máfia. Se a tarefa lhe desagrada por ver nela uma imposição e «um ar político», torna-se-lhe ainda mais difícil porque o marcado para morrer tem nome de poeta; é que, se Maynard é um profissional que gosta de «salpicar a tarefa» com «um certo sentido de justiça», também é certo que honra todos os contratos. No momento em que se deveria dar a execução, Maynard – que foi escolhido pela sua eficiência – faz uma pausa e enceta com a sua vítima um diálogo de horas, motivado por um exemplar do El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha de Cervantes, que se encontra aberto sobre uma mesa. Trata-se da última conversa entre dois solitários que partilham a ideia da vanidade dos triunfos, da ilusão das conquistas e amor pela leitura dos clássicos.

Repondo-se a acção, o «mão direita do diabo» recebe um contrato enquanto «mão esquerda de Deus», já que, antes de ser executado, Shelley incumbe-o de vingar a sua morte. Definitivamente, Deus escreve direito por linhas tortas e Maynard tem neste novo contrato a justificação para a sua missão de assassino justo, que lê as «obras completas de Kafka» e que ao som de Beethoven entende «que é sempre a milésima vez de recomeçar». E recomeça sempre nos dois movimentos: o impaciente na acção profissional e o paciente, sem pressas, nas viagens da sua alma errante por campos dentro de si onde «pega numa flor e surge a arma, a arma já é a mão, os dedos são balas». Esta é a sua desdita. É fácil visualizar-se Maynard enrolado «como um caracol», em posição fetal, como num retorno à inocência, ao mesmo tempo que se debate com as suas vozes, campainhas e besouros, que o alertam para a trama à sua volta.

Por isso, com a maleta do silenciador, Maynard «passa por caixeiro-viajante», um cavaleiro andante de sonhos amarrados numa caixa onde estão Olga e «a nostalgia de um casamento», «uma vaga nostalgia de casa-mulher-filhos-prenda no dia do aniversário-andar a tarde inteira ao sol sem ter morrido». «Água, pão, amizade e amor. Procuramos outras coisas, mas estes são os quatro pontos cardeais», diz-nos o texto. E a Maynard ocorre-lhe que a verdade da vida até pode ser simples: «A verdade é capaz de ser só isto. Estou nu, deitado na cama, e Olga está nua, a meu lado».

Todavia, a Maynard não lhe basta tirar a máscara e pôr-se nu. Ele tem ainda o seu «inefável tribunal» onde é o acusado, o juiz, o advogado o júri e o público. Adivinha-se o desfecho do seu processo com a sua consciência relatado no monólogo maynardiano: «vais considerar-te culpado, mas tens a atenuante de tal angústia, e isso é até um bocado aristocrático, fica-te muito bem, Beethoven para a esquerda, Proust para a direita, e ainda assim uma grande margem de melancolia, e depois a certeza de que um homem só é verdadeiramente com a sua solidão. Deixem-no passar, diz o povo, deixem-no passar, porque ele sofre muito e é grande, olha o sofrimento bem nos olhos e tem a coragem de continuar a viver. És um narciso da merda, Maynard. As piruetas que tu fazes para demonstrares a ti próprio que não és pior do que os outros.».

Dinis Machado recebeu vinte contos de réis para dar corpo a três policiais. Porém, os pequenos livros de bolso surgiam empapados de mar onde navegava um herói de barro, prisioneiro das suas fraquezas, como qualquer um de nós. Terá sido este o segredo que levou os leitores a considerar mítica esta trilogia; o público de Maynard espera, agora, pelo último andamento, o Mulher e Arma com Guitarra Espanhola, a sair no próximo ano.

*Nota de agradecimento ao escritor José Xavier Ezequiel, mentor deste projecto de reedição da Assírio&Alvim, por me ter disponibilizado a capa da edição romena deste Requiem para D. Quixote
Nota: este texto foi editado na Orgia Literária, dia 21.11.08
© Teresa Sá Couto

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Contos, fábulas & outras ficções de Fernando Pessoa


Contos, fábulas & outras ficções é o novíssimo título de Fernando Pessoa a ser lançado dia 27 de Novembro, pelas 18 horas, na Hemeroteca Municipal de Lisboa, Rua de S. Pedro de Alcântara, n.º 3 (junto ao Largo da Misericórdia), em Lisboa. A obra será apresentada por Pinharanda Gomes.

O Título reúne a totalidade dos textos de ficção narrativa publicados em revistas e jornais pelo próprio Fernando Pessoa, acrescentados de um inédito, e de uma sequência de cinco narrativas ortónimas e completas. Tem organização, prefácio e notas de Zetho Cunha Gonçalves e chancela da Bonecos Rebeldes.

Irreverente e indisciplinador, Contos, fábulas & outras ficções é um hino à liberdade, e um libelo contra toda e qualquer forma de censura, de prepotência, de submissão e de conformismo. E um livro – nunca será de mais repeti-lo –, transbordante de humor e de ironia, de absurdo, e daquela superior inteligência do seu autor, cuja convivialidade, para os sentidos de quem lê, é sempre uma festa no avesso das catástrofes.

Nota: Agradecimentos a Zetho Cunha Gonçalves

Teresa Sá Couto

domingo, 23 de novembro de 2008

«Encornados, encornadores e pássaros avisadores»

Na aldeia de Campoamor, os habitantes vivem ao ritmo das pulsões do corpo e voos de espírito. Como em qualquer outra aldeia. A diferença entre esta e as outras é que Campoamor tem um escriba com marcas de jornalista, cronista, romancista e poeta, que se move entre todos e regista não o que se ouviu, mas o que se ouviu contar, mais exactamente, não o que se ouvia «mas o que se julgava ter ouvido»; e remexe tudo ou são as palavras que remexem, porque elas também têm asas.

Assim surge «Campoamor – Uma história de encornados, encornadores e pássaros avisadores» pela pena de um ilusionista: Hugo Santos, alentejano, nado em Campo Maior e mestre na arte das «palavras que se apegam ao tutano dos sentires e que os chupam de tal modo que apenas quedam os ossos». Este é um «Romance mágico, na concepção e na escrita», escreve Urbano Tavares Rodrigues, no Prefácio. Necessária, luminosa e inolvidável, esta narrativa vem resgatar a tradição literária de quadros rurais tradicionais onde ressumam Aquilino, Fernando Namora e o ardiloso, subtil e satírico humor vicentino tão arredado da moderna Literatura Portuguesa, tudo impresso com elegância e harmonia artística incomensuráveis.

Amassar o barro do mundo

«Cada um sabe de si e Deus de todos»; Deus e o escriba que o vai registando ao longo das 153 páginas intensas e alígeras, com muitos enredos, muitas vozes, muitos espantos e estremecimentos soltos pela pureza e pitoresco com que se descreve o barro humano. Narrativa de observação que assenta o seu método na deambulação, cria-se um puzzle, que vai para diante e para trás, ao ritmo das histórias alheias que cada um diz saber – criando-se, assim, um prodigioso laboratório de observação social – e dos ajustamentos que vai fazendo o narrador, que colige todas, fazendo da própria escrita um festim deambulatório. A acção centra-se na fronteira espanhola, numa vila enquadrada por dois rios, alegoria do processo que subjaz à feitura duma narrativa, a realidade e a ficção, mas também das dualidades com se cose e descose a vida.

Na trama estão bandos de pássaros que assaltam o coração da vila, questionando-se «se os mais esvoaçantes são os de cima ou os de baixo, os pássaros ou os homens.». Centrando-se no voejar dos terrenos, apresenta-se uma prodigiosa galeria de personagens, homens e mulheres em cenas eróticas, em «Cavalgamentos e descavalgamentos clandestinos», «afogueamentos e desafogueamentos» no «sobe-e-desce que nos varia o sentido e nos faz crer que o infinito é já ali», mostrando, afinal, que «o concavo e o convexo eram coisas para se ajustarem, sempre que fosse preciso»; mostra-se, sobretudo, a exortação à Primavera ou a necessidade dela, naquele mês de Abril em que «o número de encornados e encornadores sobe a olhos vistos», não interessa de que ano, pois em todos os tempos e para lá de qualquer geografia é sempre tempo e lugar para o encontro de duas solidões. Nesta tese da sobrevivência humana, a narrativa entra no fantástico: um morto que escrevia cartas de amor à sua viúva e um morto-vivo que visita a sua viúva dia-sim dia-não para lhe mostrar o prodígio dos dotes que não mostrou em vida. É o mundo do avesso, entenda-se, da insurreição perante as limitações da existência, onde há ainda cegos que vêem, surdos ouvidores, um vedor falhado cuja vara de vime anuncia os mortos, uma mulher nua que enlouquecida vagueia pelas ruas com uma luz a acompanhá-la.

E percebe-se o que foram os pássaros fazer à vila: «as esperanças de muitos sempre se assemelharam a asas de pássaros, um dia confronta-se cada um com os sentires que tem e começa a voar com eles, os pensamentos têm destas coisas, juntam as pedrinhas do passado, do presente e do futuro e misturam-nas de tal modo que, a dada altura, o acontecido está para acontecer e o que se considerou feito está por fazer».

O escritor e a liberdade da escrita

«Oficiante da pena e de penas e por elas oficiado», ao escriba cabe o papel de «desatar os nós górdios dos escrevinhados e pôr pássaros onde deviam estar bichos doutro rastejo», como já anteriormente se viu. E Hugo Santos, tal como o narrador da história que «se habituou a manusear as pedras-pomes das palavras e a afiar com elas as utopias» mostra-nos de forma cristalina a relação fascinante do escritor com o processo de escrita: escrever «é um pouco como caçar mosquitos com uma espingarda de calibre 12, socorre-se o pensamento do narrador com as letrinhas necessárias ao seu enforcamento e, a dada altura, disparam umas para um lado e outras para o outro, quer expressar-se um “sim” de assentimento e sai-lhe o “não” da catequista Fernandinha Raposo quando posta sob as investidas do prior Alcino do Rosário, quando se chega ao fim da história até parece que foi outro que por nós a debitou».

Outrossim, discorre-se sobre a relação entre a realidade e a ficção, a verdade e a mentira enquanto construtoras do processo de escrita. A realidade «é mais susceptível de dúvidas que o contrabando da ficção», refere-se, e «a verdade e a mentira andam por linhas paralelas como os carris de dois comboios que vindo um do norte para sul e outro tomando trilho contrário, se encontram no mesmo apeadeiro e parecem traçados ambos pelo mesmo destino». São dois rios que se juntam em águas que galgam as margens. É como os fenómenos que ocorrem em Campoamor: «no fundo, isto é como tudo; quem acredita, vê mesmo com os olhos fechados, e quem descrê não o aceitará nunca nem com eles todos abertos».

© Teresa Sá Couto

sábado, 22 de novembro de 2008

«Platónov», nome do vazio e do absurdo

«Platónov» de Anton Tchékhov é o texto inaugural do importante autor russo, agora disponível entre nós, e o terceiro título da soberba e necessária Colecção Teatro Nacional São João, resultado da parceria da Campo das Letras com aquele Teatro da cidade do Porto. A peça esteve em palco de 17 de Julho a 13 de Agosto últimos, com encenação de Nuno Cardoso. A tradução do russo cabe a António Pescada, que já traduzira soberanamente «O Cerejal» de Tchékhov, título, aliás, com que se abriu, gloriosa, a colecção.

A vileza, o parasitismo, a impostura, outrossim o vazio existencial, o défice de utopias e a falência humana compõem o olhar crítico, que disseca o absurdo, desenganado e dramático deste «Platonov», texto de juventude, extenso, caótico, vibrante, magnético e de uma modernidade avassaladora, que Anton Tchékhov (1860-1904), apesar das inúmeras tentativas, nunca conseguiu levar à cena. A sua edição só aconteceria em 1923 com o título «Peça Inédita de A.P. Tchékhov», já que ao original faltava a página do título, não obstante referências a «Безоцовщина» ("Bezotsóvschina", que quer dizer, "Órfão de Pai"). A orfandade do título seria resolvida com o nome da sua personagem central, um herói mutilado, «fora do tempo e do espaço, dos costumes e da lei», «o melhor exemplo da moderna indefinição» do que é um herói.

«O que é a vida?(..) Quando uma pessoa nasce, segue por um de três caminhos, para além dos quais não há outros: viras à direita, e és comido pelos lobos, viras à esquerda e comes os lobos; segues em frente e comeste-te a ti mesmo», diz-nos o texto, anunciando o percurso de Platónov, ele que acaba por morrer vítima dos seus actos. Mas os quatro Actos da peça apresentam outros tipos de morte, não menos dramáticos que morte física: é explanado um sistema de destruição moral, com personagens a contaminarem-se umas às outras num percurso de inferno existencial; assim se apresenta uma sociedade doente que, pungentemente, se aniquila.

A partir de um certo ponto, serão os nossos actos irresolúveis? Serão os homens que fazem os tempos ou os tempos que fazem os homens? A questão é complexa e circular; a circularidade viciosa que produz gritos exasperados, sendo este «Platonóv» um dos seus grandes testemunhos.

Um aplauso, pois, para esta edição, que vem ao encontro dos leitores de dramaturgia e de todos os que procuram o estilete crítico e o carácter inquiridor que este género literário tão bem cultiva.

Os outros textos da Colecção TNSJ

«O Café» de Carlo Goldoni

«O Café», peça de teatro do dramaturgo italiano Carlo Goldoni, surge-nos traduzida para língua portuguesa por Isabel Lopes e Fernando Mora Ramos. Escrita em 1750, a peça, no original, La bottega del caffè, estreou em 25 de Janeiro 2008 no Teatro de São João, no Porto, e esteve em exibição até 24 de Fevereiro, encenada por outro italiano, Giorgio Corsetti, que a ajudou a ler para lhe exibir os tipos sociais que se concentram no espaço de um Café com os seus conflitos interiores, vícios, virtudes, fraquezas e jogos humanos plenos de actualidade.

Peça em 3 Actos, com a trama a desenrolar-se num Café de uma rua de Veneza, junto a um Casino, a uma Barbearia e a uma Hospedaria, este é um teatro de exteriores também na construção das personagens, como refere Fernando Mora Ramos no magnífico Posfácio titulado «O Café sem Bodega»: «O Café é meio fora, posto de observação de toda a vida que ali se cruza, e tudo o que é interior se adivinha numa tensão que explora esse desejo de saber o que se passa na invisibilidade».

Com efeito, todos parecem saber tudo uns dos outros e querem saber ainda mais, e todos, de alguma forma, se comprometem com as outras existências, tomando partido, colocando pontos de vista, confrontando posições. Os dois «desajustados» da trama principal são Eugénio e D. Marcio. Eugénio é um jovem burgês, improdutivo, boémio, endividado pelo jogo e dependente daquele vício e do de mulheres : «dinheiro na mão significa jogo, burra de saias, assédio de amor charmoso»; é recém casado com Vitória, o seu contraponto nas virtudes e que faz tudo para o salvar; D. Márcio é o viciado na soberba da sua condição de aristocrata, «mentiroso compulsivo», «predador», o «que se alimenta rapinando a vida de terceiros». Como refere Fernando Mora Ramos, são estas duas personagens que «dão espessura psíquica a um teatro de caracteres que tudo e todos torna vizinhos», as outras personagens e o espectador que facilmente reconhece no seu quotidiano, apesar do texto ter mais de duzentos anos.

Neste Café desfila, imparável, uma «fenomenologia humana desabrida, como se de repente esta praça/café fosse também uma ágora, um parlamento, um lugar de polémica público», refere Fernando Mora Ramos, acrescentando mais uma nota sobre a avassaladora actualidade do texto: «É também um teatro que funda a democracia e continua a fazê-lo, agora que é claro que ela foge por caminhos que não são apenas os do regresso da velha senhora, mas outros, os da chegada de um totalitarismo insinuante de expressão mediática.».

«O Cerejal» de Tchékhov

«O Cerejal» de Anton Tchékhov (1860-1904) chega-nos editado num pequeno, mas precioso livro. Levada à cena no âmbito do XXX FITEI – Teatro Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, a 25 de Maio de 2007, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, encenada por Rogério de Carvalho, é a última obra do autor russo, escrita já em dias de agonia e estreada no Teatro de Arte de Moscovo pouco antes de Tchékhov morrer. É considerada uma peça maior do universo tchekhoviano e da dramaturgia mundial.

No ensejo de caracterizar a decadência da aristocracia do séc. XIX, o texto apresenta-nos, através da alegoria de um antigo cerejal que vai ser destruído, os corredores humanos dos medos e inquietações, das incertezas e das contradições, da sobrevivência depois das perdas, do orgulho que não tem sustentação, da adaptação à mudança, conferindo-lhe uma notável actualidade.

O texto conta a história de uma família latifundiária que, apesar de endividada e com a propriedade hipotecada, parece recusar-se a aceitar a sua realidade, tal como o Cerejal extenso e frondoso da propriedade que se apresenta florido apesar dos três graus abaixo de zero. «O nosso clima não favorece as coisas como deve ser», diz, a propósito, uma das personagens numa denúncia subtil e irónica dos novos tempos sociais e económicos. O Cerejal é, aliás, o grande protagonista, omnipresente nos quatro actos, sendo que cada um representa um degrau em direccção à sua queda, bem como a evidência da queda da família que o possui há gerações.

Uma nota para o quarto Acto com o fecho do inevitável círculo: retoma-se o espaço do início, mas agora com a casa aristocrata vazia e as janelas sem cortinas o que faz com que o pomar pareça estar no interior da habitação onde a morte ressoa forte. Esta ideia da inevitabilidade de um fim e a assunção de não haver esperança estende-se ao velho criado de 87 anos, que fica esquecido na casa e nela resolve ficar, solitário, triste, exangue, até morrer, também numa união à morte do Cerejal que chega pelo som do «machado a golpear contra uma árvore»... Ou aqui também ressuma a despedida de Anton Tchékhov encarando a realidade da doença, da decadência física e da aproximação inevitável da sua morte.

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O futuro de Deus e da Humanidade

Nesta pequena aldeia global, onde Deus tem múltiplas figuras, parecendo que «Cada homem quer um Deus só para si», como disse Paul Holbach, qual vai ser o futuro de Deus e da Humanidade?
Envolto na nova cultura – a cibercultura – «Que novo tipo de Homem vai surgir desta “sociedade da rede”? E vai ser rede ou labirinto?», problematiza Anselmo Borges no urgente livro Deus no século XXI e o futuro do cristianismo.

«Deus é o existirmos e isto não ser tudo», escreveu, num arroubo visionário, Fernando Pessoa no Livro do Desassossego. O caminho para a partilha desta aldeia comum parece ser o diálogo inter-religioso, por mais compósitos que sejam os seus agentes, e que deve incluir os ateus, «pois são eles que permanentemente advertem os crentes para o perigo da idolatria e da desumanidade – e a idolatria é pior que o ateísmo», diz Anselmo Borges.

Contributo inestimável para o actual debate, o livro que referenciamos colige reflexões de nomes conceituados da sociologia, genética, neurobiologia, filosofia, teologia, psiquiatria, ciências da comunicação, história, ética e bioética e politologia.

Adriano Moreira, Alexandre Castro Caldas, Andrés Torres Queiruga, Frei Bento Domingues, Daniel Serrão, Edward Schilllebeeckx, Enrique Dussel, Fernando J. Regateiro, João Maria André, Joaquim Fernandes, Johann Baptist Metz, José María Mardones, Juan Martín Velasco, Juan Masiá Clavel, Manuel Pinto, Teresa M. Leal de A. Martinho Toldy são os autores que marcam presença neste livro organizado na sequência do Congresso comemorativo dos 75 anos da Sociedade Missionária. A coordenação coube a Anselmo Borges, Padre da Sociedade Missionária Portuguesa e docente de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e que abre o compêndio com o artigo «Desafios à Humanidade e ao Cristianismo»:
«Possivelmente, a revolução em curso neste início de século e milénio só tem comparação com as revoluções do neolítico e da modernidade, e tem múltiplos contornos e domínios.

São tais as perspectivas nos campos da genética e das neurociências e, consequentemente, das biotecnologias que se chega a pensar na possibilidade de uma bifurcação da Humanidade, a caminho do pós-humano. Pela primeira vez, a Humanidade tem nas suas mãos o seu segredo. O que pode e quer fazer com ele? É humano-ético tudo quanto é tecnicamente possível?
A globalização, que tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, obriga a pensar uma governança mundial e coloca de modo novo a problemática do multiculturalismo.».

José Maria Mardones, investigador no Instituto de Filosofia de Madrid, e falecido em Junho do ano passado, defende que, pela emergência do encontro inter-religioso, está em curso uma revolução espiritual, que se quer «não sobre a superfície do cultural e ainda doutrinal, mas no fundo do aprofundamento místico-experimental de cada tradição», «um avanço para o centro do Mistério através de vias plurais e várias». Se assim não for, defende, o medo de se perder a identidade pode levar a religião a converter-se num «atiçador de rivalidades, ressentimentos e sede de vingança»: «O espectro do fundamentalismo ou das religiões fortes, nas suas mais variadas formas, ameaça-nos no futuro próximo e talvez seja o inimigo principal a superar».

Diálogo com as ciências biológicas

Se o diálogo inter-religioso surge como um desafio de árdua persistência, o diálogo entre as religiões e as ciências biológicas e biotecnológicas, cujas investigações científicas apresentam nova cosmovisão, não será menos desafiador.

Fernando Regateiro, professor de Genética da Universidade de Coimbra, lembra que têm de se combater manifestações de ignorância de religiões que apontam o determinismo absoluto atribuído ao DNA, com hereditariedade da ordem de apenas 0,4, sabendo-se que a religiosidade aumenta da adolescência para a idade adulta.

Por outro lado, Daniel Serrão, professor de Biopatologia da Universidade do Porto e Bioética da Universidade Católica Portuguesa, refere, em jeito de provocação, que o objectivo da biomedicina actual «é a imortalidade do corpo, neste mundo», uma «nova religião» sobre a saúde, com «peregrinações» e «santuários» onde, entre múltiplas actividades, é «legítimo tirar órgãos de pessoas mortas ou quase mortas e colocá-los noutras pessoas para que vivam mais tempo» ou «retirar células de embriões mortos ou quase mortos, para fazer tecidos que substituam os que foram perdidos pela senescência».

Outros conferencistas abordam os métodos de procriação medicamente assistida, a profilaxia na relação sexual – que tanta celeuma tem provocado no cristianismo – a manipulação genética aplicada à alimentação, a embriologia e quando começa a vida humana, entre muitos outros. Juan Masiá Clavel, professor de Bioética da Universidade Sophia, de Tóquio, proporciona-se uma magnífica conferência sobre os mal-entendidos e incongruências do cristianismo, lançando uma questão: «Os Papas do século XXI animar-nos-ão a pensar bem a vida humana, precisamente para protegê-la e responder ao desafio da era biotecnológica?».


Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, vários autores, coordenação de Anselmo Borges; Editorial Campo das Letras, Porto, Outubro 2007

© Teresa Sá Couto

domingo, 16 de novembro de 2008

A «Erótica do Vinho»

No antigo Egipto, o deus Osíris usou-o para apaziguar os homens. Os antigos gregos puseram Dionísio a tutelá-lo. Os romanos reuniram-no sob o poder de Baco. Néctar de origem divina, com que se tenta explicar o inexplicável prazer que provoca no ser humano, o vinho é tema de fascinação, documentado desde a escrita mais antiga. É precisamente a viagem pela palavra que se deteve no vinho para lhe denunciar os seus efeitos, que encontramos no revigorante e singularíssimo «Erótica do Vinho» de Jean-Luc Hennig, chegado recentemente às livrarias portuguesas pela mão da Campo das Letras.

O livro é Composto por 30 curtas partes espargidas por 134 páginas, todas com títulos sugestivos que não logram a jornada. Também a classificação de Ensaio, que acompanha este «Erótica do Vinho», não é logro, porquanto é-nos apresentado um zeloso trabalho de pesquisa, inquirem-se os textos originais, constrói-se uma argumentação libertina e bem humorada, colocam-se questões ao leitor que as acompanha com sorrisos rasgados.

Logo a abrir, uma provocação: «Abstémio». Depois da definição do «puritano do vinho», esclarece-se que a abstinência só entrou em uso corrente no século XVIII, sendo Rousseau – que, ao que parece, gostava de copos – um dos seus defensores. Segundo aquele filósofo francês, «todos seríamos abstémios se não nos tivessem dado vinho na mais tenra idade», pois «a primeira vez que um selvagem bebe vinho, faz uma careta e regeita-o». Mas o que receava o virtuoso Rousseau? A fazer-nos lembrar o in vino veritas de «O Banquete» de Kierkegaard, onde se verificava que só os ébrios diziam a verdade, explica o texto: «o vinho liberta verdades escondidas, imprecisas, por vezes terríveis. Ele diz sempre mais do que se queria saber. Por isso alguns preferem não dar azo a dúvidas, acautelar a sua retaguarda custe o que custar, renunciar a si mesmo, enclausurar-se. A abstinência é uma religião, à qual alguém se entrega sempre de coração mais ou menos contrito.».

Portanto, continua o ensaísta, sobre a tagarelice do vinho, «basta um copo ou dois para soltar a língua», dando-se razão a Montaigne quando dizia que o vinho «desvela os segredos mais íntimos». Junte-se a isto a opinião de Saint-Preux: «Sempre notei que as pessoas falsas são sóbrias». Ora, argumenta-se, «o vinho não humidifica os corações secos. Apenas os corpos desamparados. Mas é uma opinião que do principio do mundo. Os maus são bebedores de água. Esquines disso acusará Demóstenes num célebre discurso que Baudelaire repetirá: Não é razoável pensar que as pessoas que nunca bebem vinho, naturalmente ou por sistema, não passam de imbecis ou de hipócritas?. Ava Gardner, a serpente sedutora de Mogambo, que assobia aos homens e bebe o uísque às goladas, resumiu perfeitamente as coisas: Pouco importa o ano, pouco importa a origem, todos os vinhos revelam o melhor de mim própria.».

«O vinho é uma alma plena de galanteria», segue Jean-Luc Hennig, claramente apologista da entrega ao néctar e contra toda a abstinência que considera «mortificação de alma». Detém-se na morfologia, odores e ardis, não esquecendo o «vinho de duas orelhas», expressão oriunda do recuado século XVII para classificar o vinho imprestável, o que faz abanar as orelhas de desagrado, em oposição à expressão «vinho de uma orelha», oriunda do século XVI, que desembocou na actual «detrás da orelha».

Sobre a «barafunda da alma humana quando convenientemente regada», o autor cita o matemático e geógrafo grego Eratóstenes: «O vinho tem uma força semelhante ao fogo, quando toma conta dos homens». Todavia, se «Quem bom vinho bebe, a Deus acede», como diz um adágio gaulês, «a embriaguês é um cataclismo», refere o autor na parte titulada «Diagonais»: «É verdade, a embriaguês é um desvio, um relâmpago, um zigzag. O seu trajecto é uma linha quebrada. “Não há nenhum homem sensível que não pare e não trema ao ve-los descrever uma linha circunflexa recurvada à roda”, escreve Louis Sébastien Mercier acerca dos bêbados. Pois, na bebedeira, as verticais irritam, e rodopia-se, volteia-se, dá-se com o nariz no chão e vê-se pular no ar triste/ as figuras mais profundas (Valéry)». E, definitivamente, argumenta-se, «a rua acaba por estar bêbada», como referiu Zola.

De autor em autor, e de história em história, num resgate à História dos homens, explanam-se práticas ligadas ao vinho. Delas, regista-se a prática, no século XVI – nomeadamente pelo Papa Paulo III, o instigador do Concílio de Trento, o Papa que confiou a Miguel Ângelo os frescos da Capela Sistina – de se banhar a genitalia com vinho, questionando-se: «Seria para os refrescar ou para os incendiar?».

Aliás, vinho e concupiscência perpassam todas as partes deste «Erótica do Vinho» com apontamentos deliciosos. «O vinho emite carnalidade», diz o autor reportando-se a asserções da Idade Média. E a argumentação, com base em Aristóteles, segue, engenhosamente:

Tudo vem «da espuma, do creme, do aphros, que se forma na superfície do vinho quando se verte, embora se encontre mais no vinho tinto do que no branco, pois é mais quente e encorpado. E se o vinho é espuma, é porque ele contém vento, um pneuma dotado de força, um principio de calor, de movimento, de dilatação que faz borbulhar também a atrabílis da melancolia. É por isso que os bêbados se tornam tão lascivos e luxuriosos como os melancólicos. O amor tem, ele próprio, a natureza de vento. A prova é que o membro viril entumece e engrossa inchando-se de vento. (…) Este aphros borbulhante, esta generosa espuma do vinho é pois a mesma de Afrodite, nascida do esperma do mar e figura espumosa do prazer.».

© Teresa Sá Couto

«A Língua Posta a Salvo», Elias Canetti


Texto editado no site Orgia Literária em 07/11/2008
Não é um romance, mas lê-se como se o fosse. Tampouco é um ensaio, mas apresenta um problema e explana-o argumentativamente incitando-nos à reflexão. «A Língua Posta a Salvo» de Elias Canetti – no original, Die gerettete Zunge – Geschichte einer Jugend – é a primeira de três parte de uma narrativa autobiográfica, publicada entre 1977 e 1985, que acaba de chegar às livrarias com tradução de Maria Hermínia Brandão e Chancela da Campo das Letras.

Prémio Nobel da Literatura em 1981, Elias Canetti (1905-1994) foi sociólogo, ensaísta, romancista e dramaturgo. Búlgaro, filho de um comerciante judeu sefardita, construiu em língua alemã, a sua língua da paixão, uma obra literária gizada no seu tempo, vigorosa, inquiridora e com reconhecido poder artístico. Nas 309 páginas deste «A Língua Posta a Salvo», encontramos aquelas características, para uma leitura a um mesmo tempo intensa e fluida, com desafios intelectuais actualíssimos, como é apanágio de Elias Canetti.
O grande enfoque vai para a questão da língua enquanto objecto em que se inscreve o poder, referido por Roland Barthes; trata-se, aqui, da apropriação da linguagem por parte da criança, e do papel da língua enquanto fecundadora da personalidade e fundadora de uma consciência que definirá o homem adulto na relação consigo mesmo e com o mundo. E este tema do poder das palavras no indivíduo perpassa a obra de Elias Canetti, fulgurante no romance Auto de Fé, com a pungente personagem Kien, um erudito inadaptado social que vive imerso em livros sem os quais não consegue viver, romance que li numa tradução francesa, há demasiados anos, mas do qual guardo indemnes o fascínio e a inquietação.

A linha vermelha que escreve o mundo

«A minha lembrança mais antiga está pincelada de vermelho». Assim se inicia a narração que segue cronologicamente os acontecimentos, de 1905 a 1921, desde Rustchuk, dois anos em Manchester, três anos em Viena e os restantes em Zurique. Fazendo a apologia da Língua, como uma longa linha sanguínea escultora da existência, Elias Canetti mostra a criança, numa primeira fase, a que chamarei fase do espanto inicial – a da descoberta da palavra, a do encontro da criança com a sua voz interior e a nova capacidade de agir sobre o real –, seguindo-se a fase da maturação da palavra, a do nascimento de uma consciência que, como uma impressão digital interna, será uma marca distintiva do indivíduo.

Com recurso ao seu exemplo, Elias Canetti constrói de forma surpreendente a criança que procura nas palavras a libertação do que se lhe amotina interiormente, e encontra no processo sentimentos novos e extremos, desde ternura exacerbada, a ódio assassino e rancor por lhe sonegarem a magia da língua: quando, na lembrança mais remota, aos dois anos de idade, o amante da ama ameaça cortar-lhe a língua com um canivete caso ele os denuncie – o que, avento, terá inspirado Margarida Baldaia na ilustração da capa, onde se vê um canivete encarnado a interromper uma linha interminável da mesma cor sanguínea –; quando a sua prima e companheira de brincadeira o impede de ver os seus cadernos, o que despoleta nele um ódio assassino que o faz, aos cinco anos, pegar num machado para a matar – a mesma amiga que, em retaliação, o empurra para uma caldeira com água a ferver, o que lhe valeu estar entre a vida e a morte; as narrativas que inventa sobre as figuras dos tapetes, diálogos que teimosamente continua em silêncio, depois de ter aquela actividade interdita; quando, aos oito anos, a mãe lhe esconde o livro pelo qual lhe dá aulas de alemão, livro que ela retinha «como se fosse um segredo», e que lhe provoca um rancor inaudito, a par do sofrimento perante a aprendizagem daquela língua feiticeira, «língua-mãe implantada tardiamente e com dores a sério», dito assim: «Não tinha qualquer livro que me servisse de controle, ela recusava-mo, teimosa e desapiedadamente, sabendo perfeitamente a afeição que eu sentia pelos livros e como tudo teria sido muito mais fácil com um livro. (…) Nem reparava que eu, com a aflição, andava a comer pouco. O terror em que eu vivia, achava-o ela pedagógico.».

Todavia, seria a mãe, a quem Elias Canetti dedica um amor desmesurado, a grande responsável por lhe atiçar o fogo das palavras, e seria ela a promotora das grandes mudanças na sua vida de adolescente, que o deixavam furioso, mas que o robusteceram, factos relatadas com a crueza, plasticidade e sentido analítico só possíveis a um grande escritor e observador humano. Empenhada na melhor educação para os filhos, a quem fez aprender várias línguas, lia-lhe e explicava-lhe grandes narrativas. As palavras desencadeavam outros espantos e a criança seguia-as já com os instrumentos para as maturar. E assim surgem, na narrativa autobiográfica, palavras sobre palavras lidas – Shakespeare, Dante, Homero, Schiller, Marx, Lenine, entre muitos outros –, escutadas, revolvidas, capazes de operar novas vivências, que a escola – o grande palco dos vários conhecimentos – com a embriaguês e excitação do contacto com a diversidade humana, amplia. Propõe-se, aqui, uma reflexão sobre «a escola do conhecimento do ser humano», uma reflexão actualíssima e urgente sobre qual deve ser o papel desta instituição quando se querem formar, plenamente, indivíduos.

Aos dezasseis anos, Elias Canetti saía de Zurique, sentindo-se expulso do paraíso onde foi feliz. Mas a língua estava já posta a salvo e ele transportava uma consciência que se formara num mosaico de descriminações, tensões sociais e políticas do tempo instável de várias guerras; uma consciência que viria a estudar, denunciar, inquirir o pensamento e as acções dos homens, um poder que só mais tarde confirmou: «A verdade é que eu, como o primeiro dos homens, ao ser expulso do Paraíso, só então nasci.».

Sobre esse “nascimento” falarão os próximos dois volumes desta longa narrativa autobiográfica, que deverão estar disponíveis no segundo semestre de 2009, em previsões da Editora. Pela mostra deste primeiro tomo, aguardam-se os próximos com mal disfarçada impaciência.


© Teresa Sá Couto

sábado, 8 de novembro de 2008

O mítico Lorca numa antologia magistral

À distância de uma livraria, encontramos a «Obra Poética» de Federico García Lorca, com tradução, prólogo e notas do nosso grande poeta e tradutor José Bento, que tanto tem contribuído para divulgar entre nós autores de língua castelhana. Distinguido com o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura, José Bento traz-nos mais um nome de «grandeza mítica» da Literatura universal, o frémito do malogrado Lorca, que em Agosto de 1936, com apenas 38 anos, se «tornou um dos símbolos da Espanha martirizada» pela Guerra Civil.

En la bandera de la libertad bordé el amor más grande de mi vida, escreveu Lorca. Mas o sonho tropeça na realidade e esta sua era de amor e morte, que ele assim pressagiou:

Eu vi dois meninos loucos
que a chorar empurravam as pupilas de um assassino.
Mas o dois não foi nunca um número
porque é uma angústia e uma sombra,
porque é a guitarra onde o amor se desespera.
.
Editada pela Relógio D´Água, a presente Antologia é bilingue, com a tradução portuguesa na página contígua do original castelhano, o que permite ao leitor poder envolver-se plenamente com os textos. Aliás, esta é a metodologia das edições bilingues desta editora, que muito aplaudimos, ao invés de outras que trazem o original numa secção à parte.

Verdadeira cartografia histórica e emocional da Guerra Civil de Espanha, a poética de Lorca irradia a grandeza da palavra daquele de quem foi dito ser «mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver». Com efeito, a desdita de Lorca foi viver no tempo do franquismo, o tempo da «agonia com flores de terror», das «rosas de enxofre». Sem que a História o explique, Lorca volta a casa, em Granada, ao encontro do centro do conflito. Todavia, as razões desse regresso podem estar na sua poesia:

Quero descer ao poço,
quero subir aos muros de Granada,
para fitar o coração vazado
pelo buril escuro que há nas águas.

Na madrugada de 19 de Agosto de 1936 era fuzilado. O seu corpo nunca apareceu. Um corpo enterrado num catavento, como ele parece ter previsto:

Quando eu morrer,
enterrai-me com minha guitarra
debaixo da areia.
Quando eu morrer,
entre as laranjeiras
e a hortelã.
Quando eu morrer,
enterrai-me, se quiserdes,
num catavento.
Quando eu morrer!.
.
Nos seus poemas e na prosa poética, são feitas inúmeras referências bíblicas com a recriação instigada pelos tempos cruéis que testemunhava, o cruel e «branco muro de Espanha», o desamparo de um «Deus fechado na custódia», como nos extractos que transcrevemos, primeiro da «Degolação de Baptista», a seguir da «Degolação dos inocentes»:

«(…)Por fim venceram os negros. Mas as pessoas tinham a convicção de que ganhariam os vermelhos. A recém-parida tinha um medo terrível do sangue, mas o sangue dançava lentamente com um urso tingido de cinábrio sob suas varandas. Não era possível a existência dos panos brancos, nem era possível a água doce nos vales (…) A degolação foi horripilante. Mas maravilhosamente realizada. A faca era prodigiosa. Ao fim e ao cabo, a carne é sempre pança de rã. Tem que ir-se contra a carne. Tem que levantar-se fábricas de facas. (…) o especialista da degolação (...)conhece o pescoço tenríssimo da perdiz viva. O Baptista estava de joelhos. O degolador era um homem minúsculo. Mas a faca era uma faca. Uma faca chispante, uma faca de chispas com os dentes apertados»;
«(…)Às seis da tarde já não restavam mais que seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas já estavam secas todas as feridas. Todo o sangue estava já cristalizado quando começaram a surgir os candeeiros. Nunca será no muro outra noite igual. Noite de vidros e mãozinhas geladas. Os seios enchiam-se de leite inútil. O leite maternal e a lua sustentaram a batalha contra o sangue triunfante. Mas o sangue já se apodera dos mármores e ali cravava as suas últimas raízes enlouquecidas.».
No grandioso poema «Cidade sem sono», feito à maneira exaltada e vibrante de Walt Whitman – que também influencia Álvaro de Campos, o futurista, heterónimo de Fernando Pessoa –, Lorca denuncia o tempo de castração e violência e lança o alerta para a necessidade de se estar com os olhos sempre bem abertos:
(...)
Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
Há um morto no cemitério mais longínquo
que se queixa três anos
porque tem uma paisagem seca no joelho
e o menino que enterraram esta manhã chorava tanto
que foi preciso chamar os cães para que se calasse.
A vida não é sonho. Alerta! Alerta! Alerta!
Caímos pelas escadas para comer a terra húmida
ou subimos ao gume da neve com o coro das dálias mortas.
Mas não há esquecimento nem sonho:
carne viva. Os beijos atam as bocas
num emaranhado de veias recentes
e a quem dói a sua dor doerá sem descanso
e o que teme a morte tem de levá-la sobre os ombros.
(…)
Alerta! Alerta! Alerta
aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro!
Àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte
ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,
há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,
onde espera a dentadura do urso,
onde espera a mão mumificada do menino
e a pele do camelo se eriça com violento calafrio azul.
Não dorme ninguém no céu. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém fecha os olhos,
acoitai-o, meus filhos, açoitai-o!
Haja um panorama de olhos abertos
E amargas chagas acesas.
Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.
Já o disse.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém de noite tem excesso de musgo nas têmporas,
abri os alçapões para que veja sob a lua
as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.

Obra Poética - Federico García Lorca; Relógio D´Água Editores

© Teresa Sá Couto

domingo, 2 de novembro de 2008

A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder

(texto editado no site Orgia Literária a 31 de Outubro de 2008)
.
Expressão do silêncio. Múltiplas virtualidades da palavra. Escrita de enigmas e chaves. Corpo, ar, água e fogo. Desabitação do mundo. Deflagração. Obra de movimentação errática ou longo poema contínuo. Liberdade criadora. Pura vibração. Inquietação. Inaudita emoção de leitura.

Refiro-me, evidentemente, à escrita do mestre Herberto Helder, no ensejo do seu novíssimo título A Faca Não Corta o Fogo – súmula & inédita, com o qual se mata a sede de sete anos sem edições. Com a chancela da Assírio & Alvim – editora de Herberto desde 1979, com o admirável Photomaton & Vox –, este é um livro belíssimo, de capa dura cartonada, ilustrada por Ilda David', a envolver 207 páginas de um poema longo, diverso, mas uno: assim se explica e se entende que as últimas 74 páginas com a poesia inédita não surjam num livro autónomo, mas como mais um membro – de carne, sangue e frémito – do corpo erigido, mas sempre incompleto, na súmula, eximiamente seleccionada; sem transição gráfica, a poesia inédita é anunciada discretamente pelo provérbio grego «não se pode cortar o fogo com uma faca», que o texto esclarece, ao mesmo tempo que dá pistas sobre o ofício da escrita e a criação herbertiana de um mundo: «a faca não corta o fogo, /não me corta o sangue escrito, /não corta a água, /e quem não queria uma língua dentro da própria língua? /…/ eu sim queria, / o tempo doendo, a mente doendo, a mão doendo, /o modo esplendor do verbo, /dentro, fundo, lento, essa língua, / errada, soprada, atenta». (pp. 167, 168)

Tido por muitos como «difícil, hermético, obscuro» – com o texto a dizer-nos que «Há diálogos/ extraordinários na obscuridade» –, que causa «uma espécie de pânico, ou terror» aos leitores e aos críticos, segundo Prado Coelho, Herberto Helder é autor duma escrita que se metamorfoseia a cada passo, num jogo de espelhos, como o próprio diz, onde «cada imagem é a chave de outra imagem – e elas abrem-se umas às outras», pois «tudo são chaves para abrir tudo», «A chave entra na fechadura, a porta abre-se sobre nova porta», já que atrás de um assombro «há outro assombro. / Passos apressados dentro das próprias almas.». A chave-mestra desta poesia de interioridade tê-la-á dado claramente o autor ao leitor, ao tê-lo «como um cúmplice superlativamente adequado ao texto da solidão» e à voz do silêncio, «O silêncio e o que se cria no silêncio. / E o que remexe no silêncio.». Acresce o respeito pelo silêncio da sua auto-reclusão, que o libertou de qualquer mediatismo desde há 40 anos, e o fez recusar o Prémio Pessoa, em 1994.

Corpo, ar, água e fogo

Poesia metapoética – que fala dela própria – a obra herbertiana tem no centro o corpo que respira, que se alaga na água primordial e se difunde em imagens que deflagram em diversos sentidos. Nascida no silêncio – na palavra que dispensa todas as outras palavras – esta poesia nega a univocidade para apreender os múltiplos sentidos, posicionando-se, por isso, antes do conceito. Todavia, se a palavra é o «sacrifício da coisa», na formulação de Hegel, este posicionamento ab initio – onde está a virgindade e o impulso da Liberdade Criadora – exprime a consciência funda de uma carência e a necessidade de se abrir ao mundo, marca indestrutível da obra de Herberto Helder. O texto di-lo assim:

Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo
. (p.11)

Trata-se de uma relação corpórea da palavra com o mundo, plena de erotismo, patente nos dedos fálicos que penetram a criação, da mão que masturba, e fecunda a poesia. Uma relação com o mundo de dentro para fora, pois é de dentro que a vida deflagra, sem distinção entre a vida e a morte, pois não há diferença entre o que está em cima e o que está em baixo. «Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo: /ouço-me para dentro», lê-se na súmula, para na inédita se frutificar a imagem:

a laranja, com que força aparece de dentro para fora,
como o ar se ocupa dela,
o ar ininterrupto,

como ocupa o ar todo,
como interrompe o mundo
(p.152)

A topografia do poema constrói-se com «substantivos perfeitos» que respiram «uns dos outros na tempera / e frescor da língua indestrutível», uns contaminando os outros e em significados que nunca se detêm, «Com a qualidade ardente de uma coisa para /outra coisa, como os dedos passam fogo /à criação inteira». Se assim se garante o movimento do poema, obtém-se, também, um corpo-poema com a sua "impossibilidade e irrealização", segundo Blanchot.

São nomes primordiais de alimentos, objectos, frutos, e ondas, folhas, dedos, tudo «o que a luz encurva» pela acção da cabeça em chamas e no talho da mão que executa o sangue, dá forma ao fogo, retém a faca e a faz deslizar. São «técnicas do pormenor» que unem o que existe desunido: «utensílios, talento, pensamento, epifania», ferida, «objectos arcaicos entre dedos e dedos e labaredas», «o canto ligado a ferver de música», a ferver uma «sopa superlativa», uma obra de alimento essencial que se dá a comer.

Calorífico, de ardência febril, o corpo é também sonoro, com a voz e o canto, a poesia e a música, dando-nos o texto profusas invocações ao «intuito lírico», a lembrar as apóstrofes camonianas. Trata-se, também aqui, do ofício secular do silêncio: «cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo, /edoi lelia doura», lê-se na poesia inédita do autor de Electronicolírica, título de 1964 que posteriormente recebeu o título de A Máquina Lírica.

A força estilística do Caos

«O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante», lê-se na súmula; «o caos alimenta a ordem estilística: / iluminação, / razão de obra de dentro para fora / – mais um estio até que a força da fruta remate a forma», lê-se na poesia inédita. De matriz rimbaudiana, a palavra fixa vertigens, procura o inexprimível, a «emoção escura», a «imagem dura», e a mão inundada pela «água anárquica», impelida por uma «espécie de força absoluta», busca o supremo gozo e, por isso mesmo, doloroso, detém-se em formas de beleza e os seus segredos arrancados à loucura: «uma pessoa com a mão gloriosa nas chamas/ não pára de gritar mas não tira a mão do fogo».

Há, pois, na poesia herbertiana, o silêncio e o grito inquiridor, o grito da «ferida na boca» pronunciado «golpe a golpe» nas «expressões mais simples do idioma», transmutadas pela mão do poeta que mete os dedos na «escola de laranja terrestre», «mete-lhe os polegares pelos umbigos, devora-a, celebra, embebeda-se». E o poeta, na missão de construir a sua cosmogonia, «com o peso do sangue nos dedos, os dedos no interruptor», acende uma obra rara, bela e «abruptíssima». Transcreva-se um extracto que, com indómita vibração vocabular, une, sintetizando, os métodos e a intenção do longo poema de uma vida, e que é, também, um louvor à Língua Portuguesa:

e pergunto porque estou vivo:
por amor de vinte e três palavras mais ou menos loucas,
glória às uniões inalcançáveis,
eu fodo, se me dão licença,
numa língua que vem com a fúria combustível
dos fundos da
língua portuguesa, só fodo nela,
por paixão,
matricialidade,
monogamia,
por conhecer linha a linha o corpo que se move,
a luz que levanta,
o ar que consome,
o que faz às pessoas quando dele se aproximam,
só isso me interessa naqueles com quem fodo,
ígneo donaire,
dom,
alerta,
décimo sexto sentido,
poucos poderes de salvação e obra mas
estrela muitíssima, tremenda, às labaredas,
a dança dionisíaca já dentro do abismo,
que se foda em alta língua,
é um mistério,
venha ser inadmissível, luminoso, fêmea, empolgante, grego,
quero eu dizer:
fodam comigo no mistério das línguas,
obrigado (p.180)

Referindo-se à excepcionalidade do talento herbertiano, escreveu Ramos Rosa, em palavras incontestáveis: «Herberto Helder é, de entre todos os poetas da sua geração, o único que em alguns dos seus poemas ou, pelo menos, nalguns dos seus passos, nos dá a emoção do sublime e nos faz convencer por momentos de que estamos perante uma presença genial.».

Quando passam exactamente cinquenta anos da edição do seu primeiro livro «O amor em visita», Herberto Helder mostra-nos que sempre esteve connosco, seus ávidos leitores, inquirindo no silêncio o silêncio fundo que nos habita.
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© Teresa Sá Couto