domingo, 2 de novembro de 2008

A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder

(texto editado no site Orgia Literária a 31 de Outubro de 2008)
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Expressão do silêncio. Múltiplas virtualidades da palavra. Escrita de enigmas e chaves. Corpo, ar, água e fogo. Desabitação do mundo. Deflagração. Obra de movimentação errática ou longo poema contínuo. Liberdade criadora. Pura vibração. Inquietação. Inaudita emoção de leitura.

Refiro-me, evidentemente, à escrita do mestre Herberto Helder, no ensejo do seu novíssimo título A Faca Não Corta o Fogo – súmula & inédita, com o qual se mata a sede de sete anos sem edições. Com a chancela da Assírio & Alvim – editora de Herberto desde 1979, com o admirável Photomaton & Vox –, este é um livro belíssimo, de capa dura cartonada, ilustrada por Ilda David', a envolver 207 páginas de um poema longo, diverso, mas uno: assim se explica e se entende que as últimas 74 páginas com a poesia inédita não surjam num livro autónomo, mas como mais um membro – de carne, sangue e frémito – do corpo erigido, mas sempre incompleto, na súmula, eximiamente seleccionada; sem transição gráfica, a poesia inédita é anunciada discretamente pelo provérbio grego «não se pode cortar o fogo com uma faca», que o texto esclarece, ao mesmo tempo que dá pistas sobre o ofício da escrita e a criação herbertiana de um mundo: «a faca não corta o fogo, /não me corta o sangue escrito, /não corta a água, /e quem não queria uma língua dentro da própria língua? /…/ eu sim queria, / o tempo doendo, a mente doendo, a mão doendo, /o modo esplendor do verbo, /dentro, fundo, lento, essa língua, / errada, soprada, atenta». (pp. 167, 168)

Tido por muitos como «difícil, hermético, obscuro» – com o texto a dizer-nos que «Há diálogos/ extraordinários na obscuridade» –, que causa «uma espécie de pânico, ou terror» aos leitores e aos críticos, segundo Prado Coelho, Herberto Helder é autor duma escrita que se metamorfoseia a cada passo, num jogo de espelhos, como o próprio diz, onde «cada imagem é a chave de outra imagem – e elas abrem-se umas às outras», pois «tudo são chaves para abrir tudo», «A chave entra na fechadura, a porta abre-se sobre nova porta», já que atrás de um assombro «há outro assombro. / Passos apressados dentro das próprias almas.». A chave-mestra desta poesia de interioridade tê-la-á dado claramente o autor ao leitor, ao tê-lo «como um cúmplice superlativamente adequado ao texto da solidão» e à voz do silêncio, «O silêncio e o que se cria no silêncio. / E o que remexe no silêncio.». Acresce o respeito pelo silêncio da sua auto-reclusão, que o libertou de qualquer mediatismo desde há 40 anos, e o fez recusar o Prémio Pessoa, em 1994.

Corpo, ar, água e fogo

Poesia metapoética – que fala dela própria – a obra herbertiana tem no centro o corpo que respira, que se alaga na água primordial e se difunde em imagens que deflagram em diversos sentidos. Nascida no silêncio – na palavra que dispensa todas as outras palavras – esta poesia nega a univocidade para apreender os múltiplos sentidos, posicionando-se, por isso, antes do conceito. Todavia, se a palavra é o «sacrifício da coisa», na formulação de Hegel, este posicionamento ab initio – onde está a virgindade e o impulso da Liberdade Criadora – exprime a consciência funda de uma carência e a necessidade de se abrir ao mundo, marca indestrutível da obra de Herberto Helder. O texto di-lo assim:

Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo
. (p.11)

Trata-se de uma relação corpórea da palavra com o mundo, plena de erotismo, patente nos dedos fálicos que penetram a criação, da mão que masturba, e fecunda a poesia. Uma relação com o mundo de dentro para fora, pois é de dentro que a vida deflagra, sem distinção entre a vida e a morte, pois não há diferença entre o que está em cima e o que está em baixo. «Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo: /ouço-me para dentro», lê-se na súmula, para na inédita se frutificar a imagem:

a laranja, com que força aparece de dentro para fora,
como o ar se ocupa dela,
o ar ininterrupto,

como ocupa o ar todo,
como interrompe o mundo
(p.152)

A topografia do poema constrói-se com «substantivos perfeitos» que respiram «uns dos outros na tempera / e frescor da língua indestrutível», uns contaminando os outros e em significados que nunca se detêm, «Com a qualidade ardente de uma coisa para /outra coisa, como os dedos passam fogo /à criação inteira». Se assim se garante o movimento do poema, obtém-se, também, um corpo-poema com a sua "impossibilidade e irrealização", segundo Blanchot.

São nomes primordiais de alimentos, objectos, frutos, e ondas, folhas, dedos, tudo «o que a luz encurva» pela acção da cabeça em chamas e no talho da mão que executa o sangue, dá forma ao fogo, retém a faca e a faz deslizar. São «técnicas do pormenor» que unem o que existe desunido: «utensílios, talento, pensamento, epifania», ferida, «objectos arcaicos entre dedos e dedos e labaredas», «o canto ligado a ferver de música», a ferver uma «sopa superlativa», uma obra de alimento essencial que se dá a comer.

Calorífico, de ardência febril, o corpo é também sonoro, com a voz e o canto, a poesia e a música, dando-nos o texto profusas invocações ao «intuito lírico», a lembrar as apóstrofes camonianas. Trata-se, também aqui, do ofício secular do silêncio: «cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo, /edoi lelia doura», lê-se na poesia inédita do autor de Electronicolírica, título de 1964 que posteriormente recebeu o título de A Máquina Lírica.

A força estilística do Caos

«O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante», lê-se na súmula; «o caos alimenta a ordem estilística: / iluminação, / razão de obra de dentro para fora / – mais um estio até que a força da fruta remate a forma», lê-se na poesia inédita. De matriz rimbaudiana, a palavra fixa vertigens, procura o inexprimível, a «emoção escura», a «imagem dura», e a mão inundada pela «água anárquica», impelida por uma «espécie de força absoluta», busca o supremo gozo e, por isso mesmo, doloroso, detém-se em formas de beleza e os seus segredos arrancados à loucura: «uma pessoa com a mão gloriosa nas chamas/ não pára de gritar mas não tira a mão do fogo».

Há, pois, na poesia herbertiana, o silêncio e o grito inquiridor, o grito da «ferida na boca» pronunciado «golpe a golpe» nas «expressões mais simples do idioma», transmutadas pela mão do poeta que mete os dedos na «escola de laranja terrestre», «mete-lhe os polegares pelos umbigos, devora-a, celebra, embebeda-se». E o poeta, na missão de construir a sua cosmogonia, «com o peso do sangue nos dedos, os dedos no interruptor», acende uma obra rara, bela e «abruptíssima». Transcreva-se um extracto que, com indómita vibração vocabular, une, sintetizando, os métodos e a intenção do longo poema de uma vida, e que é, também, um louvor à Língua Portuguesa:

e pergunto porque estou vivo:
por amor de vinte e três palavras mais ou menos loucas,
glória às uniões inalcançáveis,
eu fodo, se me dão licença,
numa língua que vem com a fúria combustível
dos fundos da
língua portuguesa, só fodo nela,
por paixão,
matricialidade,
monogamia,
por conhecer linha a linha o corpo que se move,
a luz que levanta,
o ar que consome,
o que faz às pessoas quando dele se aproximam,
só isso me interessa naqueles com quem fodo,
ígneo donaire,
dom,
alerta,
décimo sexto sentido,
poucos poderes de salvação e obra mas
estrela muitíssima, tremenda, às labaredas,
a dança dionisíaca já dentro do abismo,
que se foda em alta língua,
é um mistério,
venha ser inadmissível, luminoso, fêmea, empolgante, grego,
quero eu dizer:
fodam comigo no mistério das línguas,
obrigado (p.180)

Referindo-se à excepcionalidade do talento herbertiano, escreveu Ramos Rosa, em palavras incontestáveis: «Herberto Helder é, de entre todos os poetas da sua geração, o único que em alguns dos seus poemas ou, pelo menos, nalguns dos seus passos, nos dá a emoção do sublime e nos faz convencer por momentos de que estamos perante uma presença genial.».

Quando passam exactamente cinquenta anos da edição do seu primeiro livro «O amor em visita», Herberto Helder mostra-nos que sempre esteve connosco, seus ávidos leitores, inquirindo no silêncio o silêncio fundo que nos habita.
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© Teresa Sá Couto

1 comentário:

Anónimo disse...

Se HH tivesse nascido rico e rico tivesse ficado nc teria o engenho e a arte para escrever o que escreveu. Chego a pensar que Deus priva-nos dos bens e suscita-nos necessidades só para ver até que ponto conseguimos criar mundos alternativos e - dentre deles perceber uma coisa tão óbvia que salta à vista: a Faca não Corta do Fogo. Aqui o título tem uma força poderosa.
Parabéns à Teresa pelas notas a HH. Ainda q seja sp difícil sistematizar poesia...
RPM
Macro