quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português

Apresentar «uma visão ampla e contextualizada» de Fernando Pessoa num dicionário que reúne «a soma dos conhecimentos actuais sobre a sua obra e sobre o Modernismo» é a proposta do extraordinário Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português», agora editado pela Caminho, com coordenação de Fernando Cabral Martins.

Cerca de oito dezenas de especialistas assinam mais de seiscentos textos sobre temas pessoanos, resgatados na vastíssima produção pessoana de poesia, ficção, teatro, filosofia e teoria, estudando a sua relação com grandes nomes da literatura universal e partindo de ângulos tão diversos como o político, o científico, o retórico ou o esotérico.

Fernando J.B. Martinho, Manuel Gusmão, Richard Zenith, Haquira Osakabe (professor e investigador brasileiro entretanto falecido, a cuja memória a obra é dedicada), Leyla Perrone-Moisés, Jerónimo Pizarro, Manuela Parreira da Silva e Teresa Rita Lopes, entre outros colaboradores, demoraram dois anos a elaborar este dicionário.

«Este dicionário é para pessoas interessadas em Pessoa, pessoas interessadas em poesia, pessoas interessadas em Arte - porque o Modernismo tem também uma zona que não é só literária. Por exemplo, há um longo artigo sobre o Amadeo de Souza-Cardoso, ou o Santa Rita Pintor, sobre vários artistas que são importantes e mesmo correntes estéticas, como o futurismo, o expressionismo ou o dadaísmo, etc.", referiu o professor universitário e investigador Fernando Cabral Martins, em declarações à Agência Lusa.

Um acontecimento editorial do ano que me chega exactamente neste último dia de 2008. Para já, deixo a referência. Brevemente trarei aqui a minha análise deste portento.
A todos, votos de Bom Ano, com os melhores livros.


Teresa Sá Couto

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Esperança num «céu cheio de terra»

«Basta a miséria dum desgraçado, para que todos nós sejamos miseráveis», escreveu Teixeira de Pascoaes. Max Tilmann mostra-nos isso, não com palavras, mas com o silêncio inquietante das suas pinturas. Por isso, interroga-nos no lugar fundo, onde rasteja o medo, a indiferença, a crueldade, o horror. Onde se esconde a verdade da nossa condição e de como nos relacionamos com a Humanidade.

Com a chegada do novo ano, e os costumeiros votos de paz, esta é a reflexão mais sólida que motiva o gesto. Um livro sobre a memória da barbárie humana, outrossim sobre a fé, com o mote e justificação do profeta Jeremias: «Lembrai-vos dos meus tormentos e misérias, que são para mim absinto e veneno. Ao pensar nisto sem cessar, a minha alma desfalece dentro de mim. Eis porém o que hei-de recordar para recuperar a esperança.».

Nascido na Alemanha em 1955, mas a viver em Londres desde 1985, o pintor e dramaturgo Max Tilmann apresenta-nos cinquenta e duas imagens que se sucedem em degraus de descida ao horror. Estão agrupadas por capítulos, correspondendo a cada um uma letra até se formar a palavra maldita: Auschwitz.

Todavia, se aquele campo de extermínio nazista está sempre presente, as figuras que representam corpos de um destino sem Deus projectam a mensagem para muitos outros cadafalsos, erguidos com o mesmo zelo sanguinário, que tão bem conhecemos e que teimamos, por incómodos, ocultar: o genocídio dos Arménios pelos Turcos, Hiroshima e Nagasaki, o Camboja de Pol Pot, os massacres étnicos no Ruanda, Srebrenica ou a barbárie no coração da Europa…; os buracos de caveira que procuram os nossos olhos, os ombros caídos rendidos à falta de céu, os rituais na espera do inferno, seres humanos estropiados, crianças com cotos no lugar dos braços (imagem em cima), como as crianças de Angola, como todas as crianças assim consequência da blasfémia dos adultos que deveriam protegê-las…

O dever de lembrar, a obrigação de agir

«Não pinto o que vejo mas o que vi; a câmara fotográfica não poderá rivalizar com a pintura enquanto não for possível servirmo-nos dela no céu e no inferno», disse Edward Munch. Também Tilmann pinta a memória, com carácter testemunhal, num grito de alarme contra o olvido e a indiferença do homem frente ao seu semelhante, pois a indiferença é a condição sine qua non para a violentação humana e que Fernando Pessoa escreveu assim:

«o que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.».

O recurso a aguarelas, com o seu carácter a um mesmo tempo perene e fugidio, concorre para se fixar a ignomínia humana numa luta com a volatilidade da memória. Também a antinomia que se estabelece entre a delicadeza da aguarela e o horror que as tintas matizam contribui para a comunicabilidade inquietante das imagens. Torna-se evidente que todos os gestos do homem visam a Humanidade. Todos: os gestos dos carrascos sobre as suas vítimas, os que o testemunham, mas também os que não o testemunham, mas deveriam sabê-lo, pois o que ignora a humanidade avilta-a e avilta-se.

À procura das almas que ficam

Livro que folheia a alma com um baque, «Este céu cheio de terra» faz-se com uma narrativa de dor silenciosa, mas não silenciada. Acompanha-se o recolher de gente – sob a ameaça da espingarda usurpadora – que segue com as suas trouxas, e filhos pela mão, parcos haveres numa procissão maldita até camiões ou comboios. E surgem em movimento, esses túneis da morte que se apressam sobre carris para desembocarem no terminal de Auschwitz, onde ressumam todos os fins de linha de massacres humanos. Isso é-nos evidenciado pela geometria do abismo construída pela confluência de vários carris numa via única, na entrada daquele campo.

No espaço sepulcral é feita a divisão dos prisioneiros, mais corpos do que almas – porque estas parecem já estar mortas –, preparam-se os prisioneiros ao mesmo tempo que se aprontam os chuveiros onde serão gaseados, as forcas que ostentarão os espectros silenciosos, mas que nos chegam, entre a prece e o grito, aturdindo-nos.

Vertigem, angústia, violência, brutalidade, grotesco, blasfémia: eis o que nos dizem as sombras. Sombras das vitimas, sombras dos seus algozes brancos, sombras dos comboios, dos tanques, e até as sombras das nuvens que baixam à terra ou as sombras da terra que sobem ao céu…No interlúdio, imagens de paisagens onde irrompe a floresta, uma igreja ou a amálgama de cores, todas espaços da alma que observa e cisma nas suas sombras, mas também na metamorfose das árvores...

Este Céu Cheio de Terra, Max tilmann; Editorial Campo das Letras, Porto, 2006

© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Retrato do ódio no Médio Oriente

«O homem é como uma libélula. Voa sobre o rio, sobe mais alto para ver o sol e num minuto desaparece», ia repetindo Salua, uma jovem mulher, personagem principal da narrativa «A Esposa de Assuão». A lição que ia repetindo foi-a aprendendo na cadência do ódio, da violência, das balas e das bombas em nome de um Deus que parecia descer ímpio para o interior dos homens. Na faixa de Gaza, na Palestina violentada pelos israelitas, onde antes imperara a harmonia entre as três religiões monoteístas, Salua aprendia outra lição: que o Deus ganhador é o que tem força militar e política conferidas pelo poder económico.

Numa surpresa narrativa, a «A esposa de Assuão» dá-nos a explicação do ódio, como nasceu e cresceu no interior dos homens e como daí deflagra, sequioso de sangue. Com as lições de Salua, aprende o leitor a tessitura da injustiça e da revolta; se os homens de poder assim se inquietassem, talvez Jerusalém, a cidade de David, pudesse ser efectivamente a Cidade da Paz.

Escrita por Rula Jebreal, uma jornalista palestiniana com passaporte israelita, e traduzida por Carlos Aboim de Brito, a narrativa é um retrato de cerca de um século da História do Médio Oriente desvelado na sua vertente mais perturbadora: original e inquietante é o olhar da autora sobre as vítimas que não estão envolvidas nas lutas armadas, gente anónima, trabalhadora, pacífica, tolerante e com valores humanos elevados, que é emaranhada no ódio religioso fratricida das três religiões (cristianismo, judaísmo e islamismo), e o enfoque dado à força das mulheres que, mortos os seus homens por obra da insanidade humana, têm de tomar as rédeas das suas vidas.

A acção central é a fuga da família de um comerciante, um casal com uma filha, cristãos coptas do Egipto, após o assassinato do primeiro-ministro copta com o consequente atear das tensões inter-religiosas. Casadoira, Salua, a rapariga, seria entregue ao noivo, na Palestina, local para onde a família se dirige à procura da tolerância, mas ao encontro dos equívocos e da destruição: Mazen, o patriarca, é assassinado, erradamente, por suspeitas de colaboracionismo com forças britânicas, um engano que leva, todavia, o noivo de Salua a repudiá-la. Sós, numa terra estrangeira, as mulheres recomeçam a sua vida. Salua acaba por casar, com amor correspondido, com um humilde pescador muçulmano, de quem tem quatro filhos.

A sua casa do Monte Carmelo é, todavia, o espaço da felicidade a prazo, porquanto proibida naquela faixa negra do Médio Oriente: o marido é atingido por uma bomba israelita quando se dirigia a casa para junto da família e Salua vê-se espoliada pelo governo de Israel. O diálogo que aqui reproduzimos surge no clímax de um processo gradativo de densidade psicológica a fazer-nos reflectir sobre o legado de humilhação e violência humanas e as consequentes motivações para a luta armada de uma nova geração, filha de inocentes, numa explicação do círculo vicioso do ódio.
Extracto:

«- Lamento, mas esta casa foi-nos atribuída – tinha dito gentil mas decididamente a mulher, mantendo aquela visita importuna de pé na soleira da porta. Salua só conseguia olhar para trás da mulher aquele ambiente tão familiar, os belos muros brancos sobre os quais restavam dos panos bordados que aí havia até há poucos dias.
- Mas não pode ter sido “atribuída”, a casa é minha! – gritou.
- Agora a casa é nossa. Estou certa que o governo israelita providenciará uma compensação, se era realmente a proprietária.
- Compensação? – o sentido do absurdo, de injustiça, foi forte como uma bofetada. Esta casa foi comprada pela minha mãe, foi reconstruída pelo meu marido, peça a peça, e o jardim foi tratado por mim, planta a planta. Vivemos aqui durante décadas, aqui nasceram e cresceram os nossos três filhos, como pode falar de “compensação”?
- Estou certa de que o seu marido pode dirigir-se ao governo israelita – disse a mulher. (…)
- O meu marido morreu – repetiu Salua, desta vez sem gritar mas fixando os olhos daquela mulher (…) – foi morto por uma bomba israelita. O meu filho mais pequeno e a minha mãe estão bloqueados em Damasco pelo exército israelita. E enquanto as minhas duas filhas dormem numa cozinha, eu passo os dias a fazer comida para o exército israelita. (…) já me esquecia: estou grávida. Que “compensação” crê que o seu governo pode oferecer-me?
A mulher olhava-a emudecida.
- O seu filho nascerá israelita – foi o que conseguiu dizer. – Em breve teremos a paz.
- O meu filho nascerá órfão!»

A Esposa de Assuão, Rula Jebreal; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

sábado, 27 de dezembro de 2008

«Exterminem Todas as Bestas»

Com o título extraído do romance «O coração das Trevas» de Joseph Conrad, o livro «Exterminem Todas as Bestas» de Sven Lindqvist requer toda a nossa atenção. Advertindo que este trabalho é «uma história e não um contributo para a investigação da história», o autor lembra que a palavra Europa deriva de uma palavra semítica que significa «escuridão» e coage-nos a enfrentar e a tirar conclusões do que há muito sabemos: o horror perpetrado pelos europeus ao longo da história, edificando palcos de Inferno em nome da vaidade antropomórfica e antropocêntrica.

O trajecto pelos 169 curtos capítulos é, necessariamente, uma viagem pelos matizes do terror, pela intemporalidade do medo, e a tentativa de compreender essa energia monstruosa: «Um homem pode destruir tudo dentro de si, amor, ódio e crença, e até mesmo a dúvida, mas, enquanto se agarrar à vida, não pode destruir o medo».

H. L. Mencken (1880-1956) disse que “A consciência é uma voz interior que nos adverte que alguém pode estar olhando”. É neste sentido que entendo o presente livro de Sven Lindqvist: ele é um olhar acutilante que se fixa, sem contemplações, na nossa consciência colectiva de europeus e a faz estremecer de alto a baixo, desde tempos remotos até à actualidade. Inscrito na Colecção «O nosso Tempo», da Editorial Caminho, o livro é ainda mais inquietante porque não nos traz nada de novo, mas mostra-nos o que jamais deveríamos ter esquecido. O próprio autor desfralda essa inquietação ao explicar o objectivo das páginas desassombradas: «Você já sabe quanto baste. Eu também. Não é de informação que carecemos. O que nos falta é coragem para compreender o que sabemos e tirarmos conclusões.».

Sven Lindqvist desenvolve a sua narrativa num misto de «livro de viagens, relato autobiográfico e história das ideias», enquanto percorre o deserto do Sara e o computador à procura do conceito de extermínio. Com o Livro de Conrad no motor da reflexão – esse «autor profético» que «previra os horrores vindouros», ou falava dos genocídios do seu tempo? -, apuram-se as responsabilidades da Europa para com os povos de outros continentes. Relembra a visão europeia sobre as “raças inferiores”: «a verdadeira compaixão das raças superiores consistia em facilitar-lhes o desaparecimento». Recorda que o Extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich não foi original: «Hitler encontrou modelo nos britânicos e noutros povos do ocidente só que ele virou-se para Ocidente». Escreve que a «arte de matar à distância tornou-se desde muito cedo uma especialidade europeia». Defende que na Europa pré-industrial, «atrasada e com parcos recursos», a «principal exportação era a força, por todo o mundo éramos considerados guerreiros nómadas ao estilo dos mongóis e dos tártaros». Fala do aperfeiçoamento das armas ao longo da História, e da sua utilização: «A utilização de balas dum-dum entre Estados "civilizados" era proibida. Estavam reservadas para a caça de animais de grande porte e para as guerras coloniais».

Demonstra-nos que os europeus «tornaram-se os deuses dos canhões que matavam muito antes de as armas dos seus opositores os atingirem. Trezentos anos mais tarde, esses deuses tinham conquistado um terço do mundo.». Recorda-nos o tráfico de escravos, as chacinas, as matanças maciças, as humilhações infligidas pelo Homo Sapiens do continente civilizado. Depois do colonialismo, no início do séc. XIX surge o Imperialismo e uma nova forma de racismo, com um grande número de europeus a interpretar «a superioridade militar como superioridade intelectual e até biológica»: os barcos a vapor eram a nova maravilha – retratados como portadores de luz e rectidão moral – que possibilitavam o transporte da artilharia para o interior da Ásia e da Africa.

Apoiando-se em documentos de natureza diversa, escritos à época, o autor vai unindo as partículas da nossa memória e elaborando o mapa da nossa vergonha. Fala na força do colonialismo britânico contra os ashantis, em 1874, e no Egipto, em 1884. Analisa connosco o que foi escrito por um correspondente de guerra do The Morning Post sobre a batalha de Omdurman, em 1898: «Não voltará a ver-se nada que se assemelhe à batalha de Omdurman (…) Foi o último elo na longa cadeia daqueles espectaculares conflitos cujo esplendor vivo e majestoso tanto contribuiu para dar à guerra um carácter sedutor (…) um jogo esplêndido onde ninguém contava morrer». São muitos os documentos referidos, muitos os testemunhos, demasiadas as verdades, tantas quantas são as formas da nossa ignomínia.

Fica assente: depois do ser humano ter deixado de ser uno, depois que descobriu que existiam outras raças, outras formas de ser e estar, descobriu também como exercer o extermínio. «A longa lista da paleontologia encontra-se meio cheia com registos de extermínios; ordens inteiras, famílias, grupos e classes desapareceram sem deixar qualquer marca ou tradição na fauna viva do mundo. (…) Até mesmo no mundo dos nossos dias as forças da extinção encontram-se activas. Nos últimos cem anos, os seres humanos enxamearam todo o globo terrestre e empurram espécie após espécie da beira do precipício.».

Com o ano 2008 a chegar ao fim, e com todos a fazerem o "balanço de vida", eis um livro para nos fazer reflectir. E haja coragem para enfrentarmos as verdades de um mundo pejado de insanidade.

Exterminem Todas as Bestas, Sven Lindqvist; Editorial Caminho, Lisboa 2005

© Teresa Sá Couto

sábado, 20 de dezembro de 2008

Cem horas com Fidel Castro

Quer se queira ou não queira, Fidel Castro é uma lenda. O seu escritório pessoal está pejado de símbolos que fazem a narrativa do último rebelde mítico. Entre os objectos destacam-se três: uma estátua de Simão Bolívar, o libertador da América espanhola, um busto de Abraham Lincoln e, num recanto, abarcando tudo, uma escultura de bronze do Quixote montado no Rocinante, símbolo da quimera. No ar, a frase de Che: «uma grande revolução só pode nascer de um grande sentimento de amor».

Há meio século que é o líder carismático da ilha de Cuba, pequeno país rodeado por um muro desde 1962, quando o vizinho gigante americano lhe impôs o embargo, que reforçou nos anos noventa.

Lidou com dez presidentes norte-americanos: Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton e Bush filho. Nenhum conseguiu derrubá-lo, tampouco vergá-lo nas convicções de talhar a Revolução Cubana, que mantém com mão e persistência férreas, ao jeito do lema de Santo Inácio de Loiola: «Numa fortaleza assediada, qualquer dissidência constitui uma traição».

Famoso também pelos longos discursos, deu, porém, apenas cinco entrevistas em toda a vida. É esta última, terminada há cerca de três anos, que surge publicada num livro imprescindível e arrebatador sobre Cuba e sobre a História mundial do século XX. Ou seja, sobre a história de Fidel. São cem horas com Fidel Castro, numa leitura sem cansaço!

Fácil de seguir, «Fidel Castro – Biografia a duas vozes» é uma grande entrevista feita por Ignacio Ramonet com mais de seiscentas páginas, organizada em 26 temas seguindo a ordem cronológica dos acontecimentos. Numa introdução contextualizadora, o autor explica que a «longa conversa» iniciou-se em Janeiro de 2003 para terminar em Dezembro de 2005. O palco da entrevista foi o escritório pessoal de Fidel, com o líder cubano vestido no seu sempre «impecável uniforme verde-azeitona» e a costumeira frescura, não obstante as longas horas de diálogo noite dentro.

A ordem dos acontecimentos relatados parece ser ditada por Fidel, que explana a Revolução Cubana desde o século dezanove, onde lhe encontra as forças embrionárias. Uma dessas fundações está no nome José Martí, o «apóstolo», o herói comemorado em Cuba em 2003 quando do 150º ano do nascimento, altura em que também se comemorou o 50º aniversário do assalto falhado ao quartel de Moncada, perpetrado por Fidel e alguns companheiros de ideais na tentativa de deposição de Batista.

Percurso de um homem só…

Além das conversas no gabinete, o entrevistador acompanhou Fidel em vários momentos da sua agenda e deixou-se magnetizar pelo carisma do dirigente com hábitos de «monge-soldado», vida modesta, quase espartana, noctívago, com a jornada de trabalho, sete dias por semana, a terminar quando nasce o dia, bastando-lhe dormir quatro horas. O retrato vai mais longe no deslumbramento: «quase tímido, educado e muito caloroso, que dá atenção a qualquer interlocutor, com sinceridade e sem vaidade. Com modos e gestos de uma cortesia de outros tempos, sempre atento aos outros, em particular aos seus colaboradores e seguranças, é uma pessoa que não altera o tom de voz. Nunca o ouvi dar uma ordem. Apesar de tudo isto, exerce uma autoridade absoluta em seu redor. A razão é a sua personalidade avassaladora. Onde quer que ele esteja, só uma voz se ouve: a sua. (…) Desde a morte de Che Guevara que não há ninguém, no círculo do poder em que se move, que tenha um calibre intelectual que se assemelhe ao seu. Neste aspecto, dá a impressão de ser um homem só. Sem amigos íntimos, nem parceiro intelectual ao seu nível».

Concorrendo para uma interiorização da luta, é significativa, refere o autor, a inexistência do culto da personalidade. Embora presente na Imprensa, a imagem de Fidel Castro não existe em mais lado nenhum, em fotografias oficiais ou estátuas ou moedas ou avenida.

«para que todos sejam como o Che»

É sabido que uma das bandeiras da Revolução Cubana é a luta contra o analfabetismo e o trabalho para uma Educação de excelência. Fortíssima, a imagem de Che surge surpreendentemente no discurso de Fidel como exemplo e inspiração do programa educacional, pela «força moral indestrutível», pela causa, pelas ideias: «é um dos homens mais nobres, mais extraordinários e mais interessantes que conheci, que não teria importância se acreditarmos que homens como ele existem aos milhões e milhões e milhões nas massas de pessoas. Os homens que se destacam de um modo tão singular não poderiam ter feito nada se não houvesse muitos milhões como eles, com o mesmo embrião ou a capacidade de adquirir essas qualidades. Por isso, a nossa Revolução se interessou tanto por lutar contra o analfabetismo e pelo desenvolvimento da educação, para que todos sejam como o Che.».

O terrorismo americano

Em resposta a questões sobre a emigração cubana, Fidel aponta em riste para o longo embargo com consequências trágicas para os habitantes do território com pouco mais de cem mil quilómetros quadrados e onze milhões de habitantes, que querem ter uma vida melhor, além da permanente guerra ideológica e mediática que a América faz contra Havana através das rádio e televisão Martí, instaladas na Florida para inundar a ilha de propaganda, «à semelhança dos piores tempos da guerra fria»: A tudo isto, acrescem organizações terroristas hostis a Cuba, instaladas em campos de treino de Miami – entre outras, as Alpha 66 e Omega7 –, donde saem comandos armados para a ilha, com conivência das autoridades americanas: contando com as vítimas nos acidentes que acontecem na travessia, lê-se, «Cuba é dos países que mais vítimas tem tido (mais de três mil) e que mais tem sofrido com o terrorismo nos últimos quarenta anos». Não obstante este quadro construído pelos americanos, refere-se, são conhecidas as declarações de Fidel sobre o 11 de Setembro: «Que me cortem uma mão, se alguém encontrar aqui uma só frase que seja que tenha por intuito amesquinhar o povo norte-americano. Seríamos uma espécie de fanáticos ignorantes, se culpássemos o povo norte-americano pelas divergências entre os governos dos nossos países.».

Diz o autor que Fidel «acredita apaixonadamente naquilo que faz. O seu entusiasmo move as vontades» e as «palavras tornam-se realidades. Esse deve ser o seu carisma.». Talvez esse carisma, fundeado num ideal inamovível, seja a bússola que o guia apesar de entrincheirado, e lhe aponte novas ideias para a sua sociedade menos desigual, sem privatizações, mais sã e melhor educada, e agora, a defesa da ecologia.

Talvez assim se explique porque não há registo de uma única sublevação popular, que os seus ideais se tenham mantido incólumes à queda do Muro de Berlim, ao «desaparecimento da União Soviética e ao fracasso histórico do socialismo autoritário». Fidel e a Revolução Cubana fragmentam opiniões, mas nenhuma consegue ser desapaixonada.

Fidel Castro - Biografia a duas vozes, Ignacio Ramonet; Editorial Campo das Letras; Porto, Dezembro 2006

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A morfologia da dor num romance de David Grossman

A dor é um lugar largo. Pelos sentidos, ela expande-se ao exterior do corpo, tomando, adicta, sempre novos territórios. Quando a dor encontra a palavra certa, esta passa a ser um instrumento ao seu serviço e um lugar onde passa a habitar. «Em Carne Viva» é um livro do israelita David Grossman, com a morfologia da dor no seu interior, desenhada nos seus nervos pujantes, no labirinto, na exaustão.

Raramente a literatura falou assim da dor. Muito raramente uma dor literária tem tido o poder de se comunicar com a dor sentida de cada leitor. «o amor é que tu sejas a faca com a qual eu escavo dentro de mim», escreve Miriam na sua embriaguês amorosa por Yair, o homem que iniciou o jogo perigoso entre os dois: uma fantasia assente apenas na correspondência trocada entre ambos, que, lesta, lhes desnuda as almas, abre cicatrizes, e a carne viva das palavras esmiúça os sentimentos até à loucura. Com a chancela da Campo das Letras, esta é uma estranha história de amor intenso, pungente e inquietante que o leitor dificilmente esquecerá.

Editado há pouco em Portugal, traduzido do hebraico por Lúcia Liba Mucznik, este «Em Carne Viva» foi escrito em 1998 e vem juntar-se a outras obras carismáticas de David Grossman publicadas pela Campo das Letras. Se a densidade psicológica e a escrita depurada são marcas do autor, este novo título acrescenta-lhes uma original construção narrativa em três partes: primeiro, as cartas de Yair, um vendedor de livros raros, com 33 anos, casado, pai de um menino de cinco anos, mestre de vida dupla, a Miriam, uma professora com 40 anos, casada e com um passado de dor, cujas cartas se coligem na segunda parte do romance; na terceira e última parte, Chuva, surge o frémito, a transgressão às regras que os dois tinham estabelecido, e o clímax trágico da água da realidade.

Yair repara em Miriam numa reunião da Escola, sem que ela repare nele. O homem põe então em prática o «jogo louco» enviando-lhe uma carta arrebatadora. As regras são definidas: encontrarem-se «não num lugar, mas num tempo», criarem uma «intimidade anónima», conhecerem-se apenas na pele das palavras, sem nunca se verem ou ouvirem, para não serem contaminados pelo real, «os dois na mesma água» de uma fantasia com prazo de uns meses, até se esgotar o encanto. Mas os «repuxos da água» são indómitos e, carta após carta, «as folhas abrem caminho umas às outras», com doações de alma, gestos do dia-a-dia, o diário de uma obsessão, a partilha de segredos inconfessados, as promessas de pele gritadas pelo desejo, deixando-os cada vez mais nus e dependentes das palavras um do outro:

- «Não pares de escrever, agarra-te à caneta com toda a força que te resta, tremes de tensão, mas escreves, cria raízes em mim, não tenhas medo»; «eu entreguei-te um verme e tu fizeste dele um homem. São as mesmas peças, mas melhoradas»; «ajuda-me a acalmar-me. Estende-me uma mão, um dedo basta-me, preciso que agora, neste preciso momento, sejas o meu pára-raios», escreve Yair.

- «Não quero que sejas o meu pára-raios. Porque havias de ser a prisão dos meus relâmpagos? Pelo contrário, estás a ouvir? Vem cá e diz, sê a luz!»; «Escrevi na tua testa com o dedo (mas ao contrário, para conseguires ler de dentro)»; «Antes de ti, era uma dor surda e obscura, à qual talvez nem soubesse dar um nome claro, depositar-se-ia no fundo misturando-se com as outras mágoas da vida, mas tu chegaste e deste-lhe um nome e um vocabulário»; «não acho que tu sejas a pessoa que me pode curar da minha dor, Yair, mas se calhar, nesta etapa da minha vida, o que eu preciso não é de um médico, mas de alguém com uma dor como a minha», escreve Miriam no seu «calendário do efémero».

Breve e apoteótica, Chuva, a terceira parte da narrativa, levanta a questão reflexiva: Em que lugar se vive realmente uma vida plena? Na realidade ou na fantasia?
Num momento de desespero em casa, Yair telefona a Miriam, que, em aflição, corre para o ajudar, na exacta altura em que o céu de Jerusalém se desfaz nas primeiras chuvas. Quebradas as regras do anonimato, com a realidade a entrar definitivamente na bolha da fantasia, desaba sobre eles a água crua com rajadas invernais. É a chuva das lágrimas e da despedida, da confusão e da angústia, a chuva que separaria as palavras misturadas dos oito meses de devaneio a dois, a chuva do enigma da alma humana no seu confronto dilacerante com o sofrimento. Para conferir, nas 301 páginas de uma leitura esmagadora que não permite paragens.

Em Carne Viva, David Grossman; Editorial Campo das Letras, Porto, Outubro 2007

© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Portugal inovador e retrógrado

Reedição de José Sebastião da Silva Dias

Editado pela primeira vez na revista Biblos, da Universidade de Lisboa, em 1933, o ensaio «Portugal e a Cultura Europeia (séculos XVI a XVIII)», de José Sebastião da Silva Dias, falecido em 1994, foi reeditado pela Campo das Letras, há dois anos.

Se é, em primeira instância, destinado aos estudiosos do tema, é impossível trilhar as suas páginas sem que bebamos delas o sentido crítico desta forma de ser português em constante tensão entre a magnificência de ideias novas e o enquistamento das ideias tradicionais e retrógradas que emperram aquelas e, por isso, o desenvolvimento cultural.
Com o rigor da academia, o excelso retrato de Portugal na sua relação com a cultura europeia na “primeira globalização” instigada pelos Descobrimentos, e o portento da reflexão que chega indemne à nossa psicologia, o ensaio de Silva Dias suscita-nos espanto, deslumbramento e alerta-nos para o seu carácter imprescindível.

No século XVI, assumindo uma «feição militante», o Humanismo, casado com as formas renascentistas, propunha o renovo de ideias, sentimentos e hábitos, colidindo com o legado da idade média, os «vícios didácticos da Escolástica», apontando, também, a «decadência religiosa da sociedade». As empreitadas ultramarinas dos portugueses lançam o país na efervescência inovadora, além de inscreverem Portugal no mundo. Numa primeira fase, o processo é apadrinhado e incentivado pela Coroa, exultante dos novos tempos.

No «zénite dos descobrimentos», lê-se, deu-se a convivência do país com os meios intelectuais de além-Pirinéus», e uma «afluência crescente de estrangeiros aos nossos centros comerciais e marítimos. Os primeiros a chegar foram os espiões, mareantes e homens de negócio, atraídos pela esperança de prémios e lucros fabulosos. Os turistas e letrados vieram logo a seguir.». Ao mesmo tempo, portugueses contactavam com as ideias de Erasmo, Budeo, Lefèvre d´Etaples, Luís de Vives, resplandeciam Galileu, Bacon, Kepler, Harvei, entre muitos outros chamados minuciosamente para as páginas deste Ensaio.
Porém, e concomitantemente, a reacção contra o espírito da renascença e da Reforma, anti-humanista e anti-luterana surgia célere. Se o régio Mecenas, D. João III, tinha nas universidades estrangeiras, sobretudo a de Salamanca, o modelo para a Reforma, a breve trecho foi vencido nos seus sonhos de renovo coagido pela força tentacular da igreja e seus processos inquisitórios que alarmavam para o “descambar dos comportamentos” e «progresso da heresia».

Se a introdução da Medicina na Universidade - com a criação das cadeiras de Anatomia e Cirurgia em Lisboa e Anatomia, Medicina e Cirurgia em Coimbra (1556-57) - reflecte a influência do espírito europeu, todavia a escolha errada dos professores, por mau aconselhamento do Rei, fez com que a Universidade entrasse em crise por não corresponder «ao espírito que animava os humanistas e homens de ciência mais esclarecidos». Também a entrada dos jesuítas em Portugal suscitou contradições de carácter ideológico. Em vez de constituir a antítese mental do Humanismo, o ensino jesuíta «aceitava-lhe os métodos e as reivindicações, ou seja, a reforma dos costumes e o renovo da cultura». De notar que a companhia de Jesus forneceu ao país teólogos, filósofos e humanistas de gabarito. Acusados pelos opositores de «místicos iluminados», pretendia-se, no fundo, «diminuir o seu império na formação da juventude e a sua insistência na purificação dos costumes».

Os portugueses «tinham de continuar cristãos e católicos», hasteavam as forças contrárias ao renovo. Surgia a censura inquisitorial – em 1540 surge o primeiro Rol de Livros Defesos, lista de obras suspeitas, para em 1624 surgir um índice expurgatório aumentado, com a regra nº 10 a proibir «quaisquer livros em língua inglesa, Flamenca ou Tudesca», além de advertências contra livros franceses e outros de «terras estranhas» –, e intensificava-se a hostilidade do Santo Ofício contra os pregadores favoráveis à reforma dos costumes e da piedade cristã. A sua actuação, refere-se, «radicava no temor que a sua capacidade pudesse perturbar almas, abrindo aos humanistas e luteranos uma passagem que a todo o custo se queria barrar. Foi isso que despertou os ânimos, empenhando a inquisição e a opinião pública dominante numa campanha de grande estilo contra o espírito da inovação.».

Aos poucos, os estrangeiros que cá leccionassem, abandonavam o país, talvez por receios de «desgraças ou incómodos, com que já Garcia da Horta se vira a braços e que talvez tenha influído na prudente indiferença de Pedro Nunes às ideias de Copérnico». Será nesta altura que se dará a primeira conhecida Fuga de Cérebros, enquanto que outros, enfrentavam em Portugal as perseguições do Santo Ofício, ou ainda outros, menos afoitos, ficavam por no país fechados no silêncio. Expoente máximo das letras portuguesas da época, D. Francisco Manuel de Melo, que «vegetou, anos e anos, em cadeias e degredos», apresentou os portugueses com as ideias castradas, recalcados e resignados às rotinas, «sempre receosos de toda a especulação, contentando-se de saberem o necessário para dirigirem condignamente suas acções de corpo e espírito, sem alguma mistura de supérfluas disciplinas». Também no século XVIII, Luís António Verney em «O Verdadeiro Método de Estudar», que caiu em Portugal «como uma bomba», apontava o nosso isolamento cultural e o erro de em Portugal se desprezarem «todos os estudos estrangeiros, e com tal empenho, como se fossem maus costumes ou coisas muito nocivas».

Todos constatamos que, em pleno século XXI, lá vão irrompendo das trevas forças ideologicamente retrógradas com o intuito de bloquear a dinâmica da evolução, quase sempre, e porque é a única metodologia que conhecem, com técnicas extremistas e hediondas. Se este Ensaio nos mostra os séculos de luta entre a luz e as trevas, para forte domínio destas últimas, também nos mostra que, por se conhecer aquele, o poder está na luz da nova sabedoria dos tempos.

Portugal e a Cultura Europeia (séculos XVI a XVIII), José Sebastião da Silva Dias; Editorial Campo das Letras, Porto 2006

© Teresa Sá Couto

sábado, 13 de dezembro de 2008

O mundo habitável de António Drumond

«O preto, o branco e alguma cor»

Diz-se que uma imagem vale por mil palavras. Preferimos dizer que uma imagem cria mil palavras: é pelas palavras que damos forma ao espanto e à inquietação que uma imagem nos provoca quando nela habitamos. Na minha conhecida paixão pela fotografia, descubro António Drumond, fotógrafo que nos dá imagens, moradas de deslumbramentos e arrepios.

Ligado à inovação da «fotografia portuense e portuguesa» da década de setenta, Drumond chega-nos no livro antológico «O preto, o branco e alguma cor», com a chancela da Campo das Letras. Capa dura, forrada a tecido, com o nome do autor embutido, negra total, a guardar o intimismo do interior, primordial, cósmico e vital. Com textos de Bernardo Pinto de Almeida, que diz que o trabalho de Drumond foi fabricado lentamente, «despreocupado do tempo, porque se sabe feito de tempo», e de Maria do Carmo Serén que lhe reconhece uma «atmosfera alquímica», este Álbum de fotografias é um presente singular para emoções fortes.

O texto de Bernardo Pinto de Almeida, com o título «Tão Longe e tão Perto», contextualiza e faz uma retrospectiva do fotógrafo nascido no Funchal em 1936, residente no Porto desde 1959. Antecede o primeiro conjunto de fotografias que revelam o carácter contemplativo do fotógrafo, tido não por «um contemplativo qualquer, impedido de acção», mas alguém que «escolheu a via da sageza que passa pelo ameno de contemplar as coisas.». Mestrias de um artista raro que, defende-se, «ao grande ruído do mundo que o rodeia, preferiu desde sempre mergulhar no espaço interrogativo da sua própria solidão, apetrechando-se da capacidade» de «considerar a contemplação como processo interior do acto criativo».

Contemplação criadora e questionamento enformam as fotografias logo dos primeiros tempos, imbuídas por uma estética neo-realista que desvela, arrebatadoramente, «rostos humildes e quase resignados», apreende «o pulsar discreto» do que é simples, e «guarda, se não na memória, na imagem que o perpetue». Nos anos de 80 e 90, o fotógrafo seguiria por um sentido de paisagem «mas não para um paisagismo», criando imagens «metafísicas de espaços semi-abandonados, de paredes ou árvores que secaram, quase só texturas de telhados e muros puídos pelo tempo, tanto, ao menos como roupas de criança que fotografou em campos abandonados», «ruas esquecidas pela história», «acessos a lugar nenhum», «silhuetas difusas no nevoeiro», refere Pinto de Almeida.

O programa existencial de Drumond

Surpreendente nas fotografias de Drumond é a sua relação com o real, uma verdadeira experiência instaurada pela poesia que constrói um mundo interior, que é sempre uma tentativa de libertar o real. Neste sentido, o seu trabalho é um programa existencial. Surgem-nos retalhos do real, com cenas coadas pela neblina de um pesadelo evidenciando o mistério do olhar do fotógrafo, fulgurações que se erguem ante nós.

Nesta peugada, Maria do Carmo Serén, que assina o segundo texto intitulado «Espaço do tempo», fala de «Rendilhado de um olhar pleno» e «metáforas de ocultamento», com o fotógrafo a acrescentar «a sua sombra à sombra das coisas». A encenação e o jogo de contrastes entre luz e sombra, o grão que esbate os contornos, revela-nos as imagens cada vez menos imagens e mais telas impressionistas. Surgem pormenores de curvatura de corpos femininos, subvertendo o estatismo da fotografia, que passa a ostentar o movimento sensual e ondulante de corpos que falam. E tudo ondula: o corpo, o tecido inquieto sobre a pele, a comunicação que atinge o espectador.

Figura integrante do Grupo IF, Drumond manteve o tecnicismo fotográfico, mas «superou-se, pela abstracção crítica». No fim da década de 90, enveredava por outras experiências de composição, com «sobre-impressões» e colagens, fruto de uma «arte espantada com as possibilidades da sua própria invenção técnica, mais do que com o real que a despertava», refere Pinto de Almeida , «juntando o paradoxal e o imprevisto, como um jogo de dados e um punhal. Os fundos dos ecrãs negros testemunhando a noite, o âmbito do sonho», interpretando numa densidade enigmática a morbidez do mundo, nos manequins, nos espelhos, «como se nele enfim encontrasse o seu olhar uma outra forma de repouso.». Caminhos trilhados de um projecto existencial, que deixam no leitor o sobressalto e a lenta urdidura de descobertas indizíveis.

O preto, o branco e alguma cor, Álbum de fotografias de António Drumond com textos de Maria do Carmo Serén e Bernardo Pinto de Almeida. Design gráfico de Armando Alves; Editora Campo das Letras, Fevereiro de 2006

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Livros para o Natal das crianças ( parte II)

As Grandes Histórias da Bíblia

A Bíblia ensina-nos a amar o próximo e também a amar os nossos inimigos provavelmente porque eles são, em geral, as mesmas pessoas”, escreveu o escritor americano Mark Twain (1835- 910).
Batamos à porta desse belíssimo jardim das Escrituras”, escreveu o monge e teólogo João Damasceno (675-749).

Jardim da imaginação que explica a formação do universo, da criação narrativa que desenha a psicologia humana e a relação entre os homens, jardim da História, a Bíblia é uma biblioteca inesgotável, e a sua multidisciplinaridade tem sido fonte copiosa de expressões artísticas e de pensamento. Levá-la às crianças é, pois, ir ao encontro de competências essenciais para a formação do intelecto: a libertação do pensamento e, consequentemente, a aquisição da atitude crítica, a qual é, aliás, um direito humano.

Não obstante a profusão de versões infantis, ficamos surpreendidos com o novíssimo «As Grandes Histórias da Bíblia», dirigida a crianças a partir dos oito anos. Com o selo Larousse e editada pela Campo das Letras, a obra vem comprovar o carácter inesgotável dos livros antigos e o invento artístico que incentivam. Espanta-nos a beleza e sofisticação do livro, enquanto objecto, outrossim a convergência do texto com a arte pictórica e erudita das ilustrações de Michelle Daufresne, que usa uma técnica mista com cor aquosa e delicada conjugada com pinceladas de lastro grosso, granulado, colagens, concorrendo para a sensação de relevo, num jogo visual profuso, envolvente e enigmático, predicados que também divisamos na mensagem escrita: na subtileza e sentido oculto das parábolas, na indagação dos segredos dos provérbios, na reflexão sobre o que há de bom e de mau no ser humano.

Alicerce dos cristãos, os textos evidenciam, todavia, a concepção universal do homem e é esse o leitmotiv que importa aqui destacar. Confira-se no extracto de «Jesus Prega na Montanha», Novo Testamento, página 146:
«Não julgueis para não serdes julgados, pois com o juízo com que julgais sereis julgados e com a medida com que medis medir-se-vos-á. Porque é que reparas no argueiro que está no olho do teu irmão? E a trave que está no teu próprio olho, não reparas nela! Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás com clareza para tirar o argueiro do olho do teu irmão

São 200 páginas para se lerem e contemplarem com as crianças, no aconchego de uma lareira, no laço da cumplicidade entre gerações. Narram-se 54 episódios do Antigo Testamento e 36 episódios do Novo Testamento seleccionados por Dominique Barrios-Auscher, cada um, que ocupa duas páginas em livro aberto, é antecedido por uma introdução que os contextualiza na narrativa bíblica e no autor. Para que nada falte à viagem da procura do mundo mítico, e da verdade humana.


Os gnomos, a guerra e os laços

«O Pai Natal Vai à Guerra» é um livro ilusionista, na história e nas ilustrações, que nos chega também pela mão da Campo das Letras. Destinado a crianças a partir dos cinco anos, contém todo o sabor do Natal, incluindo o efeito da surpresa tão caro ao argumento da festa natalícia: é que, se o Pai Natal anda, como sempre, ocupadíssimo na organização dos presentes, ele é ajudado na árdua tarefa, não pelos seus assistentes costumeiros, mas por umas amáveis figuras: elfos, que lavam a cara com orvalho e bebem «leite lunar,» e que saltam, inusitadamente, do paganismo da Mitologia Nórdica para o Natal cristão do século XXI.

Porém, a insurreição da talentosa dupla grega de autores (texto de Aryiro Kokoreli e ilustrações de Nicholas Andrikopoulos) não se fica por aqui: o Pai Natal tem presentes para todos, para «crianças inteligentes», para os «menos espertos», para os que têm «brincadeiras violentas» e para os calmos; tem presentes para cães e até «queijo para um rato de estimação»; além destas novidades, o Pai Natal confronta-se com uma situação para a qual tradicionalmente não está habilitado: no regresso das entregas, as renas perdem-se e acabam por ir parar a um local em guerra, onde encontra um menino a chorar que, de presente, lhe pede comida.

Sem ter com ele alimentos, não estando preparado para oferecer aquele presente fora do habitual, o velho amigo das crianças sugere-lhe outros pedidos que possa satisfazer. Com frio, o rapaz acaba por receber o casaco do Pai Natal e um convite para sair daquele lugar com o velho, convite que declina, por, apesar da destruição da guerra, ser ali o local da família e dos amigos, logo, a sua casa. Uma lição de amizade e abnegação, vinda de uma criança que se tatuará, seguramente, na sensibilidade e memória dos pequenos leitores. E não é este o espírito da quadra da fraternidade?

Grandes, expressivas e de cores quentes, com poucas variantes para não haver dispersão na mensagem pictórica, as ilustrações são o complemento do intimismo e o incentivo à viagem que cada um fará dentro de si mesmo.

© Teresa Sá Couto

Alberto Carneiro, o artesão da natureza

Lições do mestre «Prémio de Artes Casino da Póvoa»

Tem 71 anos e expõe a sua arte há mais de quarenta, em Portugal e no estrangeiro. Vive na terra onde nasceu, na aldeia do Coronado, Trofa, envolvido pela natureza original e vigorosa de um vale entre o Douro e o Minho.
«A Natureza sonha nos meus olhos desde a infância», diz Alberto Carneiro, o artista plástico que tem vivido com a natureza uma relação íntima, dialogante e de mútua revelação: olha a terra, os vimes, os troncos, as raízes e as pedras para descobrir-lhes o que ainda lá não está, e redescobrir-se, ser humano, mostrando-o ao mundo.

«Perante a obra o espectador completa-a na medida em que a re-faz sua», escreve Bernardo Pinto de Almeida no álbum Alberto Carneiro – Lição de Coisas. É uma magnífica monografia editada no âmbito do «Prémio de Artes Casino da Póvoa 2007», que distinguiu o artesão da natureza, cuja arte, em época de urgência pelo respeito ambiental, é uma lição maior. A chancela é da Campo das Letras, em parceria com o Casino da Póvoa.

Alberto Carneiro – Lição de Coisas é um álbum de luxo com 242 páginas, com oito capítulos temáticos e a Biografia de Alberto Carneiro, antecedidos de uma majestosa Introdução. Está repleto de fotografias de alta definição de desenhos, projectos de esculturas, exposições e instalações do artista, tudo enquadrado pela excelência do texto do Historiador de Arte e Professor Catedrático Bernardo Pinto de Almeida, incansável na interpretação e divulgação da arte que por cá se faz, e a quem, por tudo isto, a Cultura portuguesa deve muitíssimo.

A mandala do artista

Nas antigas filosofias orientais, Taoísmo, Zen e no pensamento de Lao-Tsé, Alberto Carneiro encontrou o processo de construção da sua mandala, o caminho da reflexão interior, a busca da sua consciência e iluminação que aplicou no acto criativo: uma prática filosófica «que requer profunda iniciação e que se liga com o conhecimento do corpo e da mente e da sua inter-relação, bem como a relação destes com o cosmos de que somos também nós manifestações a um nível microcósmico», escreve Bernardo Pinto de Almeida.

Designando a obra do artista como «política ou ecologia do sensível», que não investe «na transformação do mundo, mas na transformação da própria consciência», Pinto de Almeida aponta-lhe consequências maiores: «proporcionar ao espectador não um lugar passivo mas um lugar activo, em que a obra se lhe chegue a revelar como um caminho de iluminação da sua própria consciência, instrumento com que pode, por sua vez, actuar sobre a obra.».

Actuando sobre a paisagem numa intervenção estética, o artista transforma o objecto-natural numa segunda natureza; assim, refere o texto: «o artista (a arte)» é «um mediador entre natureza primeira, a natureza-natural, e a natureza segunda, artificial, que é a verdadeira natureza do ser humano».

Neste projecto de encontros do homem com naturezas, sempre em busca da sua identidade, estão as composições O Canavial: memória-metamorfose de um corpo ausente, 1968, Uma floresta para os teus sonhos, 1970, Um campo depois da colheita para deleite estático do nosso corpo, (1973-76), com palha de centeio ou trigo e de feno, Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem, 1975, entre muitas outras apresentadas, de forma minudente, neste álbum.

Trajectos do corpo

«O teu corpo reflectido nesta obra como imagem transforma-se em arte na percepção estética de ti mesmo», escreveu Alberto Carneiro no aforismo que acompanha a composição «Meu Corpo Árvore». Com efeito, os planos da consciência, o «vigor orgânico» das esculturas talhadas na madeira, a emoção estética do corpo, água, vento e fogo inscritos na madeira ou na pedra provocam no espectador estranheza e surpresa perante a originalidade e o mistério da luz experimentada.

Imprescindível, o presente álbum é um subsídio para a compreensão da obra do artista, esclarece as obras mais enigmáticas de um percurso criativo assim explicado pelo próprio artista: «Afinal saí pelo meu corpo. Corpo e mente. Unidades de corpo. Ela nele e ele por ela. Desenvolvimentos para o cosmos. (…) Pegar na montanha, na árvore, moldá-las em matéria arte e inscrever nela os gestos da memória do corpo sobre a terra – todos os caminhos, todas as viagens, todas as mudanças, todos os saberes, todas as inquietações…».

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A grande narração do mundo

Um Álbum fotográfico de Ricardo Fonseca

Nos passos da excelência editorial, os nossos caminhos alcançam o mundo todo pelo olhar de Ricardo Fonseca. São «Registos do Olhar» coligidos no indizível: um álbum de fotografias de papel brilhante, embutidas em grandes páginas branco baço. O olhar é nómada, tal como passa a ser a alma do espectador por ele aprisionada. Um Cosmorama, refere Mário Cláudio sobre o universo feito espectáculo, no texto de introdução que comprova que também o escritor ficou cativo do olhar do fotógrafo.

«Aparição do mundo: a terra escorre /Pelos olhos que a vêem revelada», dizem versos de Sophia e que Ricardo Fonseca enche de sentido. Por isso, a viagem é imperdível. É-o do Alentejo à muralha da China em silêncios comunicantes, do labor da ria de Ovar a Guangdong, do Porto a Praga. É-o nos rostos que o disparo mágico perpetua, de crianças do Foradouro a Chiang-Mai ou dos velhos de Barcelos a Goa. Parafraseando Goethe, «somente agora, pois, a Odisseia tornou-se para mim palavra viva».

Munido da máquina que capta o mundo, «de luzes e lentes, desvenda-nos ele o planeta que nos coube, e onde soa a música da charamela que acompanha a actuação das criaturas», escreve Mário Cláudio no texto de introdução. A realidade é decantada e fixada por um processo de encenação, e assim a arte fotográfica não copia, antes recria e questiona o real.

«O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo. Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma – estagna o pensamento. Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta – sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo», escreveu Al Berto.

Ora, este álbum de Ricardo Fonseca nega o sedentarismo e o «fado de sermos sós», opera no espectador essa união com o universo, instigando-o a participar no enredo com o seu próprio olhar. «E aqui é que entramos em cena todos nós, espectadores que por fim acederam aos segredos da função. De facto não há quem sinta sem ser sentimento(…) a todos cabe o direito à indetível passagem pelo cosmorama de feira», escreve Mário Cláudio. Entramos e jamais saímos deste mapa-múndi narrativo onde acontece um grand tour pessoal.

Discursos infinitos do olhar

«Fascinados pelo rodopio de projecções do cosmorama», é no entanto impossível não se encetar o diálogo e fazer-se a consequente recriação do mundo dos fotogramas. Solta-se o discurso sobre a vida, a morte, os credos: Cristo crucificado em Macau ou a sua figuração humana, fatídica e sinistra, em Vilar de Perdizes, para, no passar da página surgirem figuras de Buda, em Bangkok, alheias aos conceitos da morte e do trágico, gozando e exalando o precioso Nirvana. Segue-se o exotismo de Katmandu, rituais de morte de Pashupatinath, e o silêncio de um cemitério relvado com cruzes brancas, em Manila, onde assoma, num audível encarnado, um sinal Stop. O carácter histriónico da morte surge, com o seu esqueleto, em Nova Iorque, em Pashupatinath, ou no Carnaval de Veneza; máscaras da vida são detidas em Vila Nova de Gaia, Patan, Goa e Banaué, e o exotismo figurativo é colhido em Singapura, Ilha de Lantau, Kathmandu e Amesterdão.

Metáforas da vida humana e da existência das coisas enformam, ainda, outros discursos sobre o efémero, o transitório, a espera. Eles estão nas casas de Cuenca em equilíbrio nas escarpas vermelhas, nos edifícios em flutuação nos planos líquidos de Veneza, nas gaiolas de aves de Hong kong – como as dos homens nos arranha-céus de Kuala Lumpur- para se seguirem outras asas, livres, mas imóveis, as de uma gaivota em são Francisco, e o da ave de Helsíquia, num interregno do voo para a entrega a uma espera. Idêntico estatismo num misto de espera intensa e abandono verifica-se no homem da loja de tecidos garridos de Goa, com uma fita métrica pendente do pescoço e na noiva de Hong-Kong, sentada no sopé de uma longa escadaria, no seu vestido branco plissado, e ramo de flores de viço efémero que, também ele aguarda numa reticência, entre a mão mole que o segura e o degrau de pedra…

Enquanto se espera, a câmara escura regista o indefinível e fixa quadros de labor: os dos barqueiros de Guangdong, os da Ria de Ovar, de Sesimbra a bordo do Pastora, ou detém-se em chapéus e espreguiçadeiras no oceano cristalino da Ilha do Coral, no Pó vermelho sequioso de água do Dubai, nas tintureiras de Fez, nas dobadeiras de Shanku, nas lavadeiras de S. Tomé com as roupas coloridas espalhadas na margem do rio que as lava.

Peregrinação infinita, esta, que nos dá Ricardo Fonseca, que «só no infinito atinge o cais de chegada», escreve Mário Cláudio. Tal como Ulisses na busca da sua Ítaca, o mais importante não é chegar, é partir e viver a grande travessia, como lembrou o poeta egípcio Constantine Cavafy: «Mas não te apresses nunca na viagem. / É melhor que ela dure muitos anos, /que sejas velho já ao ancorar na ilha, / rico do que foi teu pelo caminho, / e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. / Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. / Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. / Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. / Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, / terás compreendido o sentido de Ítaca

Nota: Ricardo Fonseca é autor dos livros "Imagens/Miragens", com texto de Cecília Jorge, "A Cidade do Levante e Oriente", ambos com texto de Mário Cláudio, "Taipa e Coloawe", com texto de João Carvalho, "As Cinco Portas de Macau", com texto de João Aguiar. É co-autor do livro comemorativo da chegada dos portugueses ao Japão, "450 Anos de Memórias", com texto de Michael Cooper.


Registos do Olhar, Ricardo Fonseca; Editorial Campo das Letras, Porto, Novembro 2006

© Teresa Sá Couto

domingo, 7 de dezembro de 2008

Morreu António Alçada Baptista

Há muito enfraquecido, o escritor António Alçada Baptista morreu hoje, aos 81 anos. Em sua homenagem, reproduzo aqui um texto que elaborei há dois anos sobre este nome grande da escrita e da cidadania portuguesas.

António Alçada Baptista: Laços de Tempo

António Alçada Baptista nasceu na Covilhã, em 29 de Janeiro de 1927. Começou a publicar depois dos quarenta anos. Da escrita fez um istmo onde confluem presente e passado, salvando a memória da voragem do tempo.

Recupera a infância passada na Beira (na fotografia), as mulheres com quem aprendeu o maior laço para a vida: o amor. É com a recordação, pão da sua alma, que se projecta no mundo: «Confesso que não desgosto nada de estar assim, a fazer de psicanalisado sem psicanalista, a tentar destrinçar a meada das herdadas construções do mundo que sinto enoveladas por dentro de mim.» Com uma escrita dialogante, leve e simples, desenovela a sua alma, e convoca-nos para seguirmos com ele em peregrinação à sua interioridade, à cor dos seus dias.

A escrita recuperadora da memória

A infância e adolescência são desveladas com portentosa carga emocional, porém com uma memória selectiva. Alçada não cultiva as situações de possíveis traumas, reservando-se guardar o que de positivo teve a sua infância: os afectos. Afinal, «No fundo, interessa-me a tarefa impossível dos poetas: tentar dizer o indizível.». Fala-nos da sua familia, da sua casa na Travessa da Barbacã, na Covilhã, nos amigos. (in A Cor dos Dias).

Fala-nos da tristeza e da solidão dos seus tempos de bibe como motores de aprendizagem, ou como um «jogo de infância já que fui criado a brincar com uma e com a outra e sou capaz de admitir que, se calhar, era uma brincadeira boa porque, detrás daquele jogo, talvez estivesse o melhor caminho que, nesse tempo, nos levava para dentro do peito, à procura do sentido da vida». Memoralista e reflexivo, romancista e novelista, a sua ficção é, no entanto, muito marcada pela sua experiência de vida. Pelas palavras o autor procura a paz, a serenidade a alegria, a vida que sem esta voz «ficaria sufocada e muda, dentro das entranhas do tempo».

As Mulheres e o Amor

As mulheres são os nós e os laços do afecto, a aprendizagem, a memória constante na reflexão da infância. São as tias, as criadas, amas, que “davam o carinho e a humidade que os homens não tinham para dar”. Em “Tia Suzana, meu Amor”, talvez a sua novela em que o tempo da memória vai mais fundo, pode ler-se:
«Não consigo zangar-me com a minha infância só porque ela estava cheia do carinho das mulheres, mas tudo o mais era uma vida de enganos. Os homens parece que queriam que eu fosse o que não eram, como se estivessem a redimir-se do poucochinho em que se tinham tornado.».

Um tempo em que não se falava do amor e do corpo, nem tampouco do desejo. Um tempo em que a mulher recebia pelas suas manifestações de carinho a frieza do preconceito masculino que aniquilava a exteriorização dos sentimentos. Diz a "Tia Suzana": «Um dia tive prazer e reparei que ele ficou surpreendido. Descobri que tinha que seguir umas certas regras: não podia mostrar-lhe o meu desejo porque ele não gostava e não podia fazer nada para lhe dar prazer(...)Como vês, a vida do meu corpo foi um bocado monótona...».

Foi com estas mulheres que experimentaram o amor sombrio e solitário que aprendeu o amor solar: amar deve ser «uma atitude de compreender e aceitar: é reconhecer os outros e respeitar a sua liberdade». Recusa o amor feito de sobejos, carregado com tudo o que não encontra outro lugar para se explanar: a solidão, as frustrações, a insegurança, o desejo de poder. Assim, defende que no amor ninguém pode ser dono de ninguém, negando a escravidão a que as mulheres da sua infância eram submetidas. A própria fidelidade deve ser exigida à compreensão e liberdade do outro: «a fidelidade ao respeito recíproco da livre singularidade do outro e do livre traçar do seu destino» (in O Riso de Deus). Não se entenda, no entanto, Liberdade por libertinagem, porquanto respeitar o outro é reconhecer que ele é livre e agir em conformidade com esse reconhecimento, esclarece-nos o autor.

Um homem Também Chora

Foi com as mulheres que aprendeu a renegar o preconceito sobre manifestações exteriores de enternecimento dos homens da sua infância. Em «Os nós e os laços» conta um episódio de um funeral onde era patente a divisão cultural entre o comportamento feminino e masculino: as mulheres choravam e os homens mantinham-se sérios. Na altura optou fazer de mulher, e chorou. Tinha escolhido a parte meiga e terna, a generosidade e a delicadeza, a ternura e o afecto, recalcados nos homens, pois assim lhe exigia a sua imagem pública.

Escolhendo a fragilidade, optava pelo poder maior: «As pessoas em geral, e especialmente os homens, não foram ensinadas a viver a radiosa epopeia da fragilidade. Ninguém nos disse que é nessa espécie de fragilidade que está a nossa marca e a nossa grandeza e que só ela nos desvenda o fantástico universo da ternura.». Ousamos acrescentar que "aprendeu a chorar" porque ousou ser feliz. Numa idade de Outono, num caminho sereno, o autor refere que quando lhe dizem ter muita sorte, responde «Nem imaginas o trabalho que me deu ter a sorte que tenho!».

Bibliografia consultada: António Alçada Baptista, in «Os Nós e os Laços»; «O Riso de Deus»; «Tia Suzana, meu Amor»; «O Tecido do Outono» e «A Cor Dos Dias». Todos os Títulos estão editados pela Editorial Presença.

© Teresa Sá Couto

sábado, 6 de dezembro de 2008

Livros para o Natal das crianças (Parte I )

Dos Lusitanos à União Europeia

«Mais que um pedaço de terra com uma História muito antiga, uma nação é a sua gente e o seu património. Portugal também és tu.». É desta forma irremovível, que corre a Introdução do «A minha primeira História de Portugal» de Sérgio Luís de Carvalho, dedicada à miudagem dos 7 aos 12 anos. Dedicada, digo, na ampla acepção do adjectivo, pois é carinho, devoção pelo conhecimento e missão de o transmitir a quem o leva para o futuro, que aqui encontramos.

Sérgio Luís de Carvalho, licenciado em História e mestre em História Medieval, que há muito nos brinda com romances magnificentes de componente histórica, surge neste livro acompanhado por Fedra Santos, licenciada em Design de Comunicação da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, que também já nos habituou à expressividade lúdica das ilustrações que executa. A parceria não podia ser melhor: escritor e ilustradora desenvolvem uma obra objectiva e lúdica, crítica e artística, com rigor histórico e sedução. Mencione-se, ainda, a chancela da Campo das Letras, editora incansável na edição de obras infanto-juvenis de altíssima qualidade, como uma vez mais se comprova.

De capa dura cartonada, «A minha primeira História de Portugal» compreende 20 capítulos, numa viagem que começa há mais de 2000 anos, no tempo dos Lusitanos, seguindo-se o tempo dos Romanos, Visigodos, Muçulmanos, Fundação da Nacionalidade, primeiros reis (do século XIII ao século XIV), consolidação da Independência (século XIV), primeiras viagens dos Descobrimentos (século XV), Grandes Viagens e Descobertas (séculos XV e XVI), o auge do Império, decadência do Império (século XVI), União Ibérica e da Restauração (Séculos XVI a XVII), Absolutismo Régio (século XVIII), novas ideias liberais e invasões francesas (século XIX), conflitos liberais e guerra civil de 1832-34, modernização de Portugal na Regeneração, Primeira República, Ditadura e Estado Novo, Democracia e, por fim, o «tempo da União Europeia». Para que nada falte nesta viagem pela História de Portugal, conta-se, ainda, uma utilíssima Cronologia de 1139 a 2002, uma «Breve biografia dos reis de Portugal nas respectivas Dinastias, a lista dos Presidentes da República» até ao presente eleito Cavaco Silva (com retratos em jeito de caricaturada dos três últimos Presidentes), terminando com um Glossário.

A par da descrição histórica, cada capítulo tem uma pequena moldura ao lado das imagens onde correm apontamentos sobre o pitoresco quotidiano, num registo de diálogo com os pequenos, e agora mais sábios, leitores (exemplo na imagem à direita - clicar na imagem, para aumentar).

Últimas palavras para o Glossário, que fecha a obra e que confirma até ao fim o rigor informativo, a sensibilidade e a desenvoltura de Sérgio Luís de Carvalho na transmissão do conceito que nsempre os parece simples, porém, muitas vezes, revestindo-se de grandes dificuldades ,quando temos de o explicar de forma sintética e clara aos miúdos. Confira-se: «Polícia Política – Corpo policial que reprime os cidadãos devido às suas opiniões ou acções políticas. Às pessoas detidas por esse alegado “delito” chamam-se “presos políticos”.»; «Condição feminina: Designação geral da situação da população feminina, seus direitos e eventuais restrições.».


A minha primeira História de Portugal, Sérgio Luís de Carvalho (texto) e Fedra Santos (ilustração), Editorial Campo das Letras, Porto, 2008

Conhecer para agir – «Atlas das Espécies em Perigo»

Se é sabido que neste momento 15 598 espécies de plantas e animais enfrentam a possível extinção, que 7266 são animais, que, destes, um em cada quatro são mamíferos, um em cada oito são aves e um em cada três são anfíbios, o que é preciso saber para agir?

«Atlas das Espécies em Perigo» é uma novidade editorial da Campo das Letras que vem, se não responder, incentivar à acção. Vocacionado para aqueles que irão tomar as rédeas do planeta – tendo por alvo as crianças acima dos oito anos – e sobre os quais recaem as consequências do presente, o Atlas reúne argumentos imbatíveis: excelso guia, percorre todo o planeta, pelas florestas, desertos, montanhas e oceanos registando a maravilha da Natureza e a inquietação da perda, fotografa e desenha minuciosamente os animais e os seus habitats, localiza-os, contextualiza-os, questiona-os e verte tudo em 96 páginas de grandes dimensões, esclarecedoras e incontestáveis.

A obra é assinada por Sally Morgan, bióloga com centena e meia de títulos publicados sobre história natural, ambiente, geografia e tecnologia, acompanhada por uma vasta equipa. A cuidada tradução portuguesa é de Jorge Pinho.
Ao todo são oito grandes capítulos por Zonas, Tipos de Florestas, Tipos de Pastagens, Desertos, Pólos e Montanhas, Oceanos e Ilhas, cada um organizado em subdivisões que identificam e caracterizam o assunto proposto, numa metodologia ao serviço de uma consulta eficaz, que lhe legitima a categoria de Guia. No final, encontra-se um Glossário, uma coluna a meia página que compila informação sobre quatro Organizações de Conservação da Natureza espalhadas pelo Planeta, com os respectivos endereços de Internet: é um piscar de olhos ao pequeno leitor para, das páginas deste Atlas, alcançar a realidade de quem trabalha no terreno a tentar, por exemplo, proteger o amável boto - golfinho de rio, cor-de-rosa - , o belo e elegante lechwe com os seus chifres em forma de lira; de quem procura a andorinha-de-lunetas, que só foi descoberta em 1968, na Tailândia, e deixou de ser vista em 1978; de quem pelos quatro cantos do mundo vai zelando pelo Património Natural, à espera que a massa humana da protecção ambiental seja em maior número do que aquela o destrói. No final da obra, encontra-se um Índice Remissivo.

Nota: Junto do Natal das preocupações com os verdadeiros reis da Festa – as crianças – podemos sempre contar com os livros, que, depois de bem escolhidos, são os presentes mais que perfeitos. Nesse sentido, esta é a parte I com sugestões de “pérolas de papel” que acabaram de chegar às nossas livrarias. Todavia, na etiqueta Literatura Infantil encontram-se outras sugestões, editadas ao longo do ano.

E ainda, em resposta a mensagens que tenho recebido: PARABÉNS aos que, inspirados pela fotomontagem que há dias editei na parte superior da coluna, à esquerda, se anteciparam aos meus textos e adquiriram algumas dessas propostas infanto-juvenis.

© Teresa Sá Couto

Genialidade intimidadora de William Blake

«O caminho do desmedido conduz ao palácio da sabedoria», disse o escritor, pintor e gravador inglês William Blake (1757-1827). Com talento inaudito, mas tido na sua época por loucura e bizarria, William Blake só alcançaria no futuro o acolhimento e o elogio da sua obra gravada em diversas, mas interdisciplinares, formas artísticas. Com sabedoria, anteviu a imortalidade quando disse: «Se o doido persistisse na sua loucura tornar-se-ia sensato».

No âmbito das comemorações dos 250 anos do nascimento do autor, a editora Antígona lançou o poderoso Songs of Innocence and of Experience, em português «Cantigas da Inocência e da Experiência». A edição bilingue, português e inglês, inclui todas as ilustrações do texto original, tudo precedido por um ensaio de Manuel Portela, responsável também pela tradução da obra. Um livro imprescindível.
Genial, intimidador, inquietante, libertário, humanista, crítico social – nomeadamente sobre a igreja inglesa, apontada com soberba pelo distanciamento que mantinha dos que mais precisavam do seu conforto –, Blake acabaria por ser reconhecido como a voz que propunha a mudança, inclusive pela Igreja Gnóstica Católica, que o santificou.

Manuel Portela fundamenta assim, brilhantemente, estas formas de ser expressas pela arte de William Blake:

«A um Deus zelador e acusador, cuja ira tem de ser aplacada através de sacrifícios, Blake contrapõe um Deus protector, sempre mais próximo das criaturas do que elas podem imaginar. Ao juízo castigador do primeiro contrapõe o amor solidário do segundo, com a sua mensagem de amor, misericórdia, justiça e paz. É no amor divino, de cujo acto gratuito brotaram todas as formas, que se encontra a condição de possibilidade do universo e da própria substancia humana. (…) Recusando o fetichismo da figura divina e as superstições eclesiásticas, reconhece na matéria humana a presença da transcendência, que ele próprio tenta hereticamente transubstanciar na gravura. Percebendo a dimensão política da revelação divina através de Jesus, afirma a necessidade de se quebrarem as leis – instrumentos da prisão do espírito e do corpo – para a afirmação da possibilidade de ser. Só deste modo está ao alcance do indivíduo a autodeterminação para uma vida livre da violência da dominação e livre do medo de si mesmo.».

E escreve assim o inconformado Blake, no poema «O pequeno vagabundo»:

Mãe, querida Mãe, a Igreja é fria,
Mas a Taberna é sã, alegre & quente;
Além disso, eu sei que me tratam bem,
Coisa que a gente lá no céu não tem.

Se na Igreja nos dessem cerveja,
E lume que nos consolasse a alma,
Era orações e hinos todo o dia:
Da Igreja ninguém se perderia.

Pregasse o Padre, bebesse & cantasse,
E nós como as aves na primavera;
A beata, que está sempre na Igreja,
Não vergastava as crianças traquinas.

E Deus, como pai contente por ver

Os filhos tão contente como ele:
Não falava em Diabo ou em Barril
Mas dava-lhe um beijo & roupa e bebida.

Sobre o carácter inesgotável das mensagens de Blake, adverte o tradutor sobre as limitações da tradução, pois «por baixo da forma impressa» continua a «ouvir latejar sons e sentidos que, com outro leque de escolhas, teriam levado o texto numa direcção diferente», e acescenta: «a ilusão de forma final dada pela palavra impressa na página contradiz o movimento sempre vivo e turbulento da linguagem».
É esse latejar inquietante, que mostra os dois lados da alma, que sentimos no magnífico poema «Uma árvore venenosa» (segunda imagem, à direita). Confira-se:

Com amigo me dasavim:
Disse-lho, à ira dei fim.
Desavim-me com inimigo:
Nada disse, cresceu comigo.

Com receios a fui regar,

Noite & dia sempre a chorar:
E o sol foram sorrisos,
E ardilosos avisos.

Foi crescendo noite e dia
Numa maçã luzidia,
Que inimigo cobiçou,
Sabendo quem a criou.

Veio roubar-ma ao pomar
Estando a noite a velar;
De manhã vejo-o bem morto
Junto à arvore do meu horto.


Cantigas da Inocência e da Experiência, William Blake, edições Antígona, Lisboa, Outubro 2007

© Teresa Sá Couto

Revelação de incêndios - poesia de Helena Carvalhão Buescu

«Ninguém fala de termos olhos capazes, / rectos sobre a terra, sem mentir. / Ninguém fala de dissolvermos os enigmas apenas /para desdobrarmos, no fundo deles, os poemas /que os fazem iluminar.». Iluminar lugares esconsos da alma é o ditame do livro de poesia Ardem as Trevas e Outros Lugares de Helena Carvalhão Buescu.

Intimista, subtil, carismática, esta poesia é para ser lida sem pressas, pois só nesse modo sábio ela se liberta, pujante e dialogante. Assim: «pouco a pouco, lentamente, / despimos as palavras e nelas nos despimos, /apresentando a caprichosa alma:/acordando, vestimos a pele/do que aprendemos a tocar,/ sabemos quão breve é este instante,/ e quão frágil a hora de voar

Os homens têm feridas que não se vêem: «Ruivo é o medo», «ruiva é a redonda angústia», lembra-nos Helena Carvalhão Buescu. Com palavras que nos levam de visita às «dobras do que chamamos destino», aos dias que habitamos, «quase de noite», aos dias que sangram, a autora abre as portas daquela casa subterrânea: «As palavras estão ali, e são feridas, quando é preciso; os silêncios também. Porque as mãos são feitas do tempo das nuvens que caíram, os gestos também: como as sementes, as noventa sementes plantadas na terra.».
Organizado em três grandes partes, este compêndio poético desafia a caminhar na «secreta raiz», pelos corredores da inquietação e do estremecimento, possibilitando-nos vestir a pele das coisas vividas e ter nesse gesto um apaziguamento inenarrável. Neste sentido – da mão estendida em direcção a nós, que nos pacifica – esta é uma poesia de revelação, de esperança, contra o esquecimento, contra a morte. Abençoadas mãos que nos devolvem assim as palavras, «o nome das coisas» agrilhoadas na alma.

Para conferir nas 121 páginas e nestes extractos:

Perante a morte estamos sempre sozinhos.
Umas vezes de pé, desassombrados.
Outras deitados em concha, no soalho.
Umas vezes dela falamos, outras não.
Nessas fingimos ter a fala neutra e esquiva,
Como se a tristeza não enchesse o horizonte.

Sozinhos perante ela certo é que estamos.
Dobramos o riso na curva dos caminhos,
Juntamos mãos a outros gestos já traçados,
Calcamos passos sobre a terra
E beijamos, nos nossos filhos,
A memória que, nossa, não teremos.

Traço as letras. Ao traçar as letras,
Sei de que falo.
Entretanto, nunca o saberei.

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Talvez tenha sido esse o dia (foi seguramente)em que falaste de asas,como se a noite as fizesse crescerpor delas falarmos:e houvesse, ao nosso lado,o intermitente rufar das suas penas.

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Só ontem disseste caminhamos sozinhos,
e por isso só ontem te entendi:
o silêncio do mundo está cheio de vozes.

Ardem as trevas e outros lugares, Helena Carvalhão Buescu; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto