quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sociedade secreta de Vila-Matas, em Lisboa

O escritor catalão Enrique Vila-Matas vai estar em Lisboa, no Centro Cultural de Belém (CCB) no próximo fim-de-semana, no ensejo da estreia da peça de teatro “Sentido Portátil”, uma adaptação do seu magnífico "história abreviada da literatura portátil". O acontecimento é imperdível. Ver aqui informações, acedendo a "sentido portátil".

A obra que está na base da peça é genial, e está editada entre nós. Recupero o texto que elaborei em 2006, quando o livro foi editado pela Campo das Letras. Deixo votos de boa leitura, óptimo espectáculo e surpreendam-se com este encontro.

Viagem à insólita psicologia dos criadores

Dizia Paul Valéry que o infinito «é uma questão de escrita», que «o universo só existe no papel». Comprova-o quem já teve a felicidade de se encontrar com a escrita de Enrique Vila-Matas. O autor das magníficas crónicas «Da cidade Nervosa» deixa-nos atónitos com «História Abreviada da Literatura Portátil».

Desta vez “desmantela-se” a conspiração shandy ou sociedade secreta dos portáteis, fundada em 1924 onde conjuraram escritores de renome da literatura universal, como García Lorca ou Scott Fitzerald. Com todos, por acontecimentos bizarros e hilariantes, o leitor viaja à psicologia dos criadores, que jamais verá da mesma maneira: este portento de Vila-Matas, como o próprio diz, permite-nos conhecer «os que tornaram possível que hoje se possa desmascarar com mais facilidade do que nunca todos os que, como disse Hermann Broch, “não é que sejam maus escritores, mas sim delinquentes».

Esta "História Abreviada da Literatura Portátil" foi publicada pela primeira vez em 1985 e é uma obra emblemática de Enrique Vila-Matas, traduzida em inúmeras línguas e, «transpondo as páginas do livro, originou diversas conspirações na vida real» ou não fosse o seu conteúdo “abrasivo”. A conjura shandy – que significa alegre, volúvel e maluco –, cuja característica era a de conspirar por conspirar, foi o «elo de união dos que formaram uma sociedade secreta sem precedentes na história da arte». Fundada na foz do rio Níger, foi dissolvida três anos depois, na sequência de um escândalo em Sevilha.Dela fizeram parte, entre muitos outros, García Lorca, Scott Fitzerald, Marcel Duchamp, Walter Benjamin, César Vallejo, Rita Malú, Valery Larbaud, Berta Bocado, Alberto Savinio e Georgia O’Keefe.

Pela mão de um narrador-investigador daquela sociedade secreta, mergulha-se na «história abreviada ou avariada» de escritores com atracção pelo minimalismo e defensores da «apoteose dos pesos ligeiros na história da literatura» e segue-se-lhes o rumo por vários pontos do mundo, «peregrinos medievais para quem o essencial era a viagem» e terem histórias para contar.

Para se ser shandy, e assim ser-se admitido na sociedade secreta, havia requisitos a cumprir: exigia-se um alto grau de loucura, ter uma obra que não fosse pesada e coubesse numa caixa-mala – para se cumprir o gosto de viajar com uma maleta que continha toda a obra –, «ter espírito inovador, sexualidade extrema, ausência de grandes propósitos, nomadismo infatigável, tensa convivência com a figura do duplo, simpatia pela negritude, o culto da arte e da insolência». Todos requisitos para a concentração na criação artística e apologias do desconcerto, «como fonte inesgotável de novas e estimulantes sensações».

Loucura, criação, fraude e magnetismo

Porque a solidão é necessária para criar, todos odiavam crianças, elucidado na história de Walter de la Maré que, «na sangria da vontade, da independência, da liberdade de concentrar-se no trabalho», chegou a atirar o filho pela janela. Em busca do retiro amigo da actividade criadora, muitos shandys resolveram fazer uma viagem imóvel ao fundo do mar, refugiando-se durante algum tempo dentro dum submarino ancorado no fundo das águas do porto de Dinard, na Bretanha, uma antiguidade bélica da primeira guerra mundial. Uma Nave de loucos, onde se libertava a excitação, o fumo e o álcool, que «evocava a bíblica Arca de Noé, tão parecida com o submarino, pois nunca como nesta ocasião houve tanta variedade de feras portáteis reunidas».

O escrúpulo em relação ao pormenor era justificado por só as coisas mínimas permitirem viver intensamente. Por outro lado, «miniaturizar é tornar portátil, e esta é a forma ideal de possuir coisas para um vagabundo ou exilado». Mas miniaturizar é também ocultar, daí o fascínio dos shandys por tudo o que exigisse ser decifrado: emblemas, manuscritos, anagramas. E assim seguiam, com a sua caligrafia microscópica, enigmática, volúvel e maluca, «coleccionadores carregados de coisas, quer dizer, de paixões».

Na “simpatia pela negritude”, refere-se Blaise Cendrars com a sua Antologia Negra que, baseada numa «intensa biografia», coligia histórias populares africanas, e propunha-se reproduzir «pela primeira vez na Europa contos que missionários e exploradores foram transmitindo oralmente». Concluiu-se que as estórias de Cendrars eram uma fraude, fabricadas pelo próprio, «apanhadas no ar» e construídas a seu belo prazer.

Por breves 107 páginas, o leitor segue magnetizado pela escrita indomável do autor catalão, que apresenta e polemiza o impensável, e que, veloz, só admite pausas na leitura para a interjeição do espanto, o sorriso que reage à ironia ou a reflexão proposta pela singularidade. E segue os encontros dos portáteis nas sextas-feiras, numa livraria, a polémica dos suicídios reais e literários - com a moda de suicídios por barbitúricos, numa «grande orgia de pastilhas», em quartos elegantes de hotéis europeus -, o “extravio” de alguns membros dos portáteis, por desistência, incompatibilidade ou morte, até à extinção da sociedade secreta heróica, em 1927.

História Abreviada da Literatura Portátil, Enrique vila-Matas; editorial Campo das Letras, Porto, Junho 2006

Nota: texto meu sobre Da Cidade Nervosa

© Teresa Sá Couto

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