domingo, 1 de março de 2009

Rui Herbon lança novo Romance

O Romper das Ondas é o novo romance de Rui Herbon, que será lançado no próximo dia 02 de Março, às 18 horas, na Livraria Almedina do Atrium Saldanha, estando a apresentação pública a cargo da escritora Lídia Jorge.

O Romper das Ondas recebeu o Prémio Literário da Cidade de Almada 2008, em Outubro último, e é o quarto romance editado de Rui Herbon, a seguir aos Voar como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (Um Filme Português), Prémio Eixo-Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa 2002, Absinto (A Inútil Deambulação da Escrita), Prémio António Paulouro 2004, da cidade Fundão e Os Girassóis.

Como Pré-publicação, deixo aqui um extracto do novo romance, com agradecimentos ao Rui Herbon que mo disponibilizou antes de chegar às livrarias. Além deste extracto, pode ler-se um outro que editei no site Orgia Literária.


«(...) Para usar uma frase feita, dir-lhe-ei que então – situemos esse então nos primeiros anos do silêncio – o inconsciente denunciava-me. Eu continuava a ir ao psicanalista, apesar dos riscos que isto implicava e do meu decadente poder aquisitivo. Sonhava profusamente e em cinemascope: pequeno luxo nocturno. Anotava num diário as minhas imagens oníricas, com o propósito de tê-las bem presentes no momento de fazer o meu relatório, desde o divã. Um dos sonhos faz parte do romance e passo a transcrevê-lo:

Ninguém deixa de assombrar-se. O vento duplica o alvoroço. É gente que exclama aqui e ali. Estamos na planície, dispersos em pequenos grupos. Alguns contemplam os firmes torreões e o céu, propiciamente limpo para turistas indómitos. O Professor contempla um plano dedutivo do castelo, onde só falta colocar a capela. Desde a ameia mais alta pode ver-se o fosso e a muralha suja de cinzas, também as cercas e barbacãs que flanqueiam com teimosia o acesso à fortaleza. Agora dirigimo-nos para a ponte levadiça. Asius e o Professor ficaram para trás, ainda entretidos com o mapa e com a descoberta da atalaia desmoronada. Butch toma-me pela cintura e entramos juntos na torre de menagem. Algo ali pertencia-nos; cada coisa parece-nos familiar. Por um resquício do passado surge a recordação de uma caixa contendo três ratazanas. Butch evoca-as. Achá-las mortas, por nosso imperdoável descuido, enche-nos de angústia. Contudo, a possibilidade de encontrá-las ainda com vida inquieta-me. Butch volta-se de costas para mim, inquisidor; ainda sabe como procurar os vestígios da nossa anterior passagem entre as paredes desses habitáculos em ruína.

Debaixo de um colchão de escombros e pó, está a caixa. Butch abre lentamente a tampa. As ratazanas estão aí, como solas de sapatos postas ao sol. Uma, a mais pequena, engana-nos. Salta. Eu corro. Trepa, desce, vem para mim. Oh, não. Está enredada nos meus pés. Por meio de um estalido, transforma-se em múltiplos insectos voláteis que se perdem no meu olhar; o meu olhar que se vira magicamente para a meia-luz de um passadiço subterrâneo. Sobre tarimbas estamos os vivos: o Professor, a sua mulher – muito desgrenhada, com uma enorme gravidez –, Asius, outras pessoas, Butch e eu. Somos prisioneiros dos mortos. Os mortos formam um Tribunal. Têm corpos emprestados. Intuo-o: falam acerca de nós. O lugar é uma armadilha. Suspeito que resolveram provocar-nos um grande sofrimento. É mais que um pressentimento; estou certa de que esperam a nossa desintegração. Deixar-nos-ão morrer de fome?

Extenso e plano é o campo de concentração, ou a antecâmara, para a tortura e a morte. Sempre fui uma rebelde paciente na sala de espera. Vejo-me na porta de serviço, pobremente, com tanta ânsia, com tanto ódio. Isto queima, isto queima-me. Os mortos têm semblantes de um encantador nada; caras azuis, mal pintadas, cheias de hematomas; estão vestidos com retalhos. Usam coletes e jardineiras e olhos alucinados. Transportam-nos para um vestíbulo. Sentamo-nos em círculo, ombro com ombro. Na perna, uma mancha começa a picar-me. Coço-me. Os nervos dão-me mais comichão. Volto a coçar-me, coço freneticamente. Com as unhas provoco uma leve ferida. Os mortos, que nos vigiam de perto, vêm o fio de sangue. Por que se incomodam e me perguntam se vai sarar? Por que necessitam saber se ficará uma cicatriz? Agora sei: querem os nossos corpos bem sãos, inteiros, com uma boa superfície. Os nossos corpos serão a sua nova vestimenta. Portanto, não haverá actos de violência; utilizarão um gás venenoso que não deixe manchas nem marcas na pele. Que farão com Butch? Como não pensei nisso antes? Pela expressão do seu rosto, intuo que urde um plano para escapar. (...)». pp.25,26


nota: ver artigos sobre Rui Herbon na etiqueta correspondente

© Teresa Sá Couto

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