quarta-feira, 1 de abril de 2009

Palavras escritas e ditas a Vermelho

A vida é um «Compêndio» e, diz-nos Albano Martins, no livro Escrito a Vermelho, que Escrever /é isso: fazer /da vida uma pauta/ e um compêndio de espuma. «Melodia do Silêncio», a poesia do poeta beirão é um solfejo de veias que encontrou na excelência artística de António Pinho Vargas inspiração para Sete Canções de Albano Martins para canto e piano, editadas em CD no ano 2000, revividas no passado dia 27 de Março, na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Gaia, interpretadas pelo barítono António Salgado.

Com este trabalho, o músico que tem dado som à melodia de poetas permite-nos a reflexão sobre o diálogo que se estabelece (e deve estabelecer) entre artificies da sensação, mesmo que com distintos estilos e ferramentas ou dito assim por Albano: A sensação que tens /é de que tudo /quanto dizes já o leste /noutros livros. Mas /depois consideras: também/ o sol e os pássaros /repetem todos os dias /a mesma canção. Imperdíveis, garanto, a poesia de Albano e o CD de António Pinho Vargas.

O livro Escrito a Vermelho é de 1999 e está disponível individualmente, mas também está inserido na Antologia Poética Assim são as Algas, ambos editados pela Campo das Letras. Se alguns críticos defendem que aquele livro é uma obra que sintetiza o percurso poético do autor, prefiro dizer que ele é mais uma criação, sempre diferente, inconfundivelmente albaniana, esculpida com sangue e fogo, e a prova do desígnio de ser poeta: o desassossego vertido no dinamismo vocabular e nas sempre surpreendentes metáforas sinestésicas, a procura dos muitos lados da realidade – e a consciência de que essa realidade é cheia de “fendas”, vã a captura, mas ciosa a entrega:

Quando a porta se abriu,
perguntaste quem era.
Não se pergunta ao amor
que nome tem.


ou,

Nunca te disseram
que a aparência é só
o primeiro lance. Em todos
os jogos há sempre
uma carta escondida


ou,

Não te esqueças de,
ao sair,
deixar a porta
aberta. Podes
perder a chave
e não entrar.
Ou podem roubar-ta,
o que é pior.
Porque são numerosos
os ladrões do azul.

Nesta era de sobejos tempos vãos em que «Não são apenas relógios» que nos atraiçoam, podemos, todavia, contar com a poesia cúmplice que ouve o nosso silêncio e dá forma às «Pequenas coisas» que nos enformam:

Também se pode
Regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.


ou,

Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.

Apaziguados pelas palavras, lembremo-nos, por fim, do «Compromisso» a que nos desafia Albano Martins:

Pertence-te /ser homem, afirmar /todos os dias que tens /um compromisso: ser claro /e brando como a luz /e, como ela, /necessário. E não deixar crescer à tua porta /ervas daninhas.


© Teresa Sá Couto

2 comentários:

hb disse...

muito bom :)

deixei o resto do comentário como resposta ao do meu blog :)

Teresa disse...

Pois tens de conhecer, Hugo. São mais de cinquenta anos de vida literária. Tenho os livros todos dele e o Albano Martins é um grande amigo que muito admiro.

T.