quinta-feira, 11 de junho de 2009

O mundo nos seus pés - a excelência literária de Kapuscinski

Falar de Ryszard Kapuscinski é abrir a grande janela para o mundo, uma vastidão que ele traduziu numa magistral literatura de viagens. Falecido em Janeiro de 2007, com 74 anos, o jornalista e escritor da Bielorrússia deixou uma obra a ecoar pelos quatros cantos do globo, os mesmos que calcorreou para compreender a grande família humana, e dar-nos disso conta.

«Andanças com Heródoto» foi editado entre nós pouco depois da morte do autor, pela Editorial Campo das Letras, que tem a chancela de vários títulos de Kapuscinski. Com as Histórias do grego na bagagem, fica clara a síndrome incurável e contagiante da viagem: «a viagem nem começa no momento de iniciarmos a sua rota, nem termina ao chegarmos ao destino. Na realidade, começa muito antes e, praticamente, nunca acaba, porque a fita continua a rodar dentro de nós, mesmo se, fisicamente, não sairmos mais do lugar.».

Atente-se num «homem obcecado por uma ideia que não o quer deixar em paz. É vivaz, não consegue viver sem se mexer; anda sempre a mudar de sítio; onde aparece provoca inquietação e movimento!». Talvez Kapuscinski fale de Heródoto, que talvez fosse assim. Mas do homem que morreu há vinte e cinco séculos, e pioneiro na captura da globalização, pouco sabemos; sabemos porém que esta demanda inesgotável que se alimenta do próprio infinito é apanágio do repórter polaco, «atraído pelo além-fronteiras» de todos os mundos, sempre interessado em «novas pessoas, novos caminhos, novos céus», considerado um dos grandes mestres do jornalismo moderno, eleito em 1999 o melhor jornalista polaco do século XX, distinguido em 2003 com o Prémio Príncipe das Astúrias, e que presenciou 27 revoluções, viveu 12 frentes de guerra e foi 4 vezes condenado a ser fuzilado.

Escrever para existir

No presente título, Kapuscinski dá conta de viagens pela Índia, China, Ásia Menor e África, que fez com «a mala e o saco cheio de livros», entre eles o Histórias de Heródoto que o acompanha no caminhar e lhe possibilita fazer o diálogo entre os tempos, e que lhe foi dado pela sua redactora-chefe. Este último pormenor biográfico é o primeiro de vários que correm nas páginas do livro, o que o distingue dos outros títulos do autor. Como se quisesse mostrar-se ao leitor, confiar-lhe a alma do homem que conta as histórias que vê, que sente antes de ver e por ver, que enquadra a realidade abrindo-lhe novos horizontes.

Diz o autor que é na Índia que trava o seu primeiro «encontro com o desconhecido», e aprende a grande lição da humildade.
Depois do calor tórrido da Índia, ao chegar ao frio gélido da Polónia, Kapuscinski define-nos os sentidos da totalidade que se adquire no acto de viajar, como a junção de opostos dá plenitude aos seres humanos: «O mundo já não era monotonamente frio e nevado, mas duplicara-se, diferenciara-se: era, ao mesmo tempo, gelado e caloroso, branco de neve, mas também verde e florido.».

Com o mundo aberto «como um leque de temas», desata-se a escrita perscrutadora de espaços e formas de vida e tudo lido no comportamento dos povos, como no exemplo que se segue:

«O indiano é um ser descontraído, o chinês é atento e tenso. Uma multidão de indianos tem um aspecto disforme, enquanto uma multidão de chineses aparece em filas, disciplinada e caminhando ordenadamente. Sente-se que sobre a multidão de chineses há uma autoridade, um comandante, enquanto com a multidão de indianos está um areópago de infinitas divindades que não exigem absolutamente nada. Se uma multidão de indianos encontra algo interessante, pára e vai olhar e debater. Numa situação idêntica, uma multidão de chineses continua em marcha, firme, atenta às ordens (…)não tem tempo para festejar porque têm de cumprir directrizes de Mao ou de outro dirigente; em vez de venerar os deuses, pensam respeitar o protocolo e, pelos caminhos, em vez de peregrinos, desfilam brigadas de produção.».

E corre assim a escrita magistral, impressiva e impressionista:

De facto, ainda era noite fechada, quando as pessoas começaram a andar na direcção do rio. Alguns sozinhos, outros em grupo, clãs inteiros, colunas de peregrinos, inválidos com muletas, esqueletos de velhos levados às costas de jovens, outros simplesmente paralíticos, sofridos, rastejavam penosamente pelo asfalto gasto e esburacado. Juntamente com as pessoas, arrastavam-se vacas, cabras e manadas de cães magros e maláricos. Acabei por me juntar a esse estranho mistério.

E ainda, a descrição sinestésica e terrível, a ombrear com o Inferno de Dante:

Do outro lado do Rio Ganges, que aí é extenso e preguiçoso como um lago, há filas de fogueiras de lenha, onde ardem centenas, milhares de cadáveres. Quem estiver interessado pode, por algumas rupias, chegar ao bote até esse gigantesco crematório ao ar livre. Deambulam por aqui homens e rapazes meio nus, fuliginosos, que com paus enormes compõem as fogueiras. Trata-se de melhorar a circulação do ar para acelerar a queima, porque a fila dos cadáveres não tem fim e a espera é morosa. De vez em quando, esses coveiros empurram as cinzas, ainda com chamas, para o rio. Durante algum tempo o pó cinzento dança nas ondas, mas rapidamente desaparece no fundo do rio.
Diz-nos Kapuscinski que Heródoto «é um repórter de sangue puro», que toma notas do que «viu, aprendeu, ou simplesmente para não esquecer». Diz Saint-Exupéry que «Somos, uns para outros, peregrinos que, com pena, prosseguem caminhos diferentes para um encontro comum». Na síntese dos dois está Kapuscinski, o redactor e tradutor do mundo, que regista o tempo para fixar a memória, por saber que sem ela não se pode viver, que detrás do «não sabemos estende-se o território da ignorância, e ignorância quer dizer inexistência».

Andanças com Heródoto, Ryszard Kapuscinski, Editorial Campo das Letras, Porto, Abril 2007


© Teresa Sá Couto

nota: este é mais um livro em destaque na 79ª Feira do Livro do Porto

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