quinta-feira, 9 de julho de 2009

O movimento da escrita de Vergílio Alberto Vieira

Testar as potencialidades da palavra. Fazer com as palavras o que se faz com encontros, tantas vezes inusitados, que se estabelecem na vida: acolhê-los para nos desvendarmos. Assim acontece em Papéis de Fumar, livro de poesia de Vergílio Alberto Vieira. O papel branco, como uma máquina fotográfica, prende instantes do real para o interpelar.

Por 311 páginas, ressuma um «sopro de origens», o diálogo primordial das descobertas e surpreende-se o eterno movimento da escrita que é, também, o eterno movimento da alma à procura de si mesma. Viajante «em torno de si mesmo», Vergilio Alberto Vieira incita-nos à caminhada do auto-conhecimento. Fica claro que a alma, como um livro, nunca está escrita: «Por dentro escrito, e por fora, é um, o Livro, todos os livros, e nenhum».

No prefácio, Ivan Junqueira (Presidente da Academia Brasileira de Letras) passa em revista o trabalho poético de Vergílio Alberto Vieira e encontra nele a «busca incessante de uma identidade ontológica que se diria, não propriamente perdida , mas ainda por conquistar». É como se o poeta, refere, «procurasse insistentemente dentro de si mesmo, não o que perdeu, mas o que ainda não encontrou.»

«Périplo rumo ao interior» de si mesmo

Na «arte de achar, de descobrir-se a si mesmo», Vergilio Alberto Vieira «tornou a dor o anseio da viagem»: «eu tinha pressa ainda de chegar, /Onde, não sei, no aperto de vencer /A distância que vai de mim a mim.». Essa distância é percorrida com o remover contínuo de terra, braços que agarram o instante, num jogo perpétuo de «floração do sangue», uma clara alusão ao sacrifício da criação poética. Munindo-se de uma plêiade de elementos simbólicos, o poeta procura explicações, cônscio da efemeridade do instante da descoberta: «Entre dois espelhos /corre, o escasso dia, e ninguém /com ele corre»; «Na mão ausente, /outro cigarro vago de /tudo se fumou».

O perpétuo movimento da caminhada em direcção ao conhecimento é expresso em versos ora curtos ora longos, com a própria disposição a marcar a cadência do movimento, vibrantes, sonoros, demonstrando que «A paixão por dentro prende /O demoníaco galope dos cavalos». Fortíssimo, pujante, o símbolo dos cavalos percorre todo o livro: «deslumbramento de asas / o trote imoderado /dos cavalos»; o agitado das crinas, «a Espora»; o bramido das rédeas; «tribulações de terra /mudavam /os cavalos»; «desde as origens de medo /cobrem a passagem /provam /nos músculos a sentença /do pão /Pelo relincho decretam /a paz onde a terra levanta o lume /à altura das arcas /Nada os detém /entre o limite doméstico /da casa /Como pode o corpo cercar /a cor entre os cavalos»; «como se outra fora a luz /Com que os cavalos apuram no vento /as fisiologias da visão /…/uma só cor explica o coração».

A branco e azul

No movimento contínuo de «deflagração dos dedos» e «fósforo do olhar», o poeta, cujo «destino é fitar /Degrau a degrau, a solidão, /E perder tempo, esperar /Dias negros, só, em vão», sujeita-se totalmente à escrita: «Persegue a mão que o conduz /À brancura do papel». A cor branca surge como símbolo da revelação, associada à luz do conhecimento, e, também, ligada a outros símbolos femininos: a Lua ou a cal. A Lua, símbolo da fertilidade, renovação e crescimento e, porque reflecte a luz do Sol, está ligada ao conhecimento. Por outro lado, porque ligada à noite, associa-se à noite interna do poeta, à zona escura da alma que quer ser iluminada, e ao mistério da criação: «Liberto da condição /de existir encarcerado /Escuta em sonho o coração /A si mesmo aconchegado». E o coração inquieto grita o azul, o sonho: «solta o azul /ó asa».

Respondendo ao chamamento interno «Permanece/ó ser», «As aves bebem /na fonte /essa loucura», procura incessante de revelações no infinito: «montam cavalos / brancos, /Já não lhes resta o leito /acolhedor. Precisam /de falar com Deus /para morrer».
O poema «O Livro» sintetiza todo o investimento artístico do poeta:

São breves, e invisíveis, como os ritmos da terra.
Pelos livros, sei o que não vêem os olhos; o que
não colhem as mãos, quando, de sombra, a boca se ilumina.
Com seu poder diurno, um livro demora a ser.
Por isso, celebra o espaço: por cada instante,
sustém, na pedra, a fuga clara.
Uma vez aberto, um livro jamais poderá fechar-se;
abre-se onde, de resto, o fim começa.
Inaugural, ergue da terra novo fulgor divino.
Umas vezes, perpassa, como um tráfego secreto;
outras, esquece: ao primitivo ardor dos caracteres regressa como um deus.
Leio o que escrevo e sei, agora, o azul helénico do
mar. O livro é ainda a procurada luz dos barcos. A
água assina cruelmente essa suspeita.

Papéis de Fumar, Vergílio Alberto Vieira; Editorial Campo das Letras, Porto, Março 2006

© Teresa Sá Couto

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