terça-feira, 28 de julho de 2009

«Pessoas, Animais e Outros que Tais»

A arte de contar histórias

Um narrador que fala com o leitor, um cão companheiro de jornada do narrador com faro infalível para detectar feitios e personalidades, e treze histórias entrecruzadas, é a proposta do livro Pessoas, Animais e Outros que Tais – Narrações do Dr. Domingos Pintado assinado por Pedro Baptista, um exímio contador de histórias.

Não há sossego nesta leitura. No centro irradiador da narrativa está uma loja de velharias, frequentada pelos clientes habitués que dão origem a estórias com outras estórias engatilhadas que a escrita encaixa a um ritmo vertiginoso. Com subtileza, o reino animal é convocado, criativa e inusitadamente, para se construírem as personagens no desfile de títeres da existência, para se destruírem apatias na leitura. São 163 páginas farejadas pelo cão Púchkin, onde até surge uma história de amor entre um burro e um ardina, além da história do fascínio entre o leitor e a leitura.

O narrador Domingos Pintado é um reformado acabado de chegar aos sessenta anos, antiquário e alfarrabista, estabelecido no Porto, na travessa de Cedofeita, «quase a chegar ao largo chamado de Alberto Pimentel, onde acabam as Oliveiras e Mártires da Liberdade começa». A sua loja cheia de «cangalhada» expõe, além de velharias literárias, todo o tipo de objectos, a «panóplia das coisas do mundo». Por isso, nela exalam os cheiros do tempo e vibram os sons que compõem enredos. Fiel companheiro do leitor, este narrador transmite-lhe todas as ambiências, todos os humores além de, com mestria, o levar para dentro das narrativas para o fazer participante no julgamento das personagens e do próprio narrador.

Dado a degustações, o singular narrador almoça frequentemente no Buraco, na rua Bulhão Pato, carapauzinhos de escabeche, onde a «conta era feita a olho e sempre igual», «puxava por um cafezito no Majestic ou no Ateneu, em seguida um salto à Latina, quando não à Bertrand e à Leitura, a ver as novidades ou, melhor, «a ver se havia novidade». Com ele, ou melhor, connosco – narrador e leitor –, o inseparável cão Púchkin «que não só era como uma pessoa, era mesmo uma pessoa. Não humana, mas pessoa», um grande psicólogo. Mesmo antes de nós – narrador e leitor –, o canídeo topou logo o Pimenta, personagem que percorre as narrativas que, todavia, podem também ser lidas autonomamente, como se de contos se tratassem.

Aristides Pimenta é um «autêntico mito» de partidas cruéis e humilhantes, pelo que o desejo de se lhe dar «uma ensinadela assomava cada vez mais a mente de todos» até que um dia o rapaz de uma estalagem pincelou «toda a pelugem dos interiores nasais do Pimentola» com o «material mais prosaico da vida animal…estrabo, bolisco, bestoiro, com sua licença, era mesmo merda» e é ver o altivo Pimenta no descontrolo da loucura. Figura esquálida, nariz afilado e «meia dúzia de pelos semeados a despropósito no centro da cabeça», aparecia umas vezes para companhia «que uma pessoa precisa numa hora deprimida, outras o inverso a estragar o dia que até tinha começado por sorrir, outras nem uma coisa nem outra, um chato de adormecer». O cão rosnava-lhe, presenteando-o com o «melhor dos seus sorrisos», mostrando a «dentuça escancarada a rosnar apaixonado»: «com efeito, o Pimenta era daqueles capazes de fazer uma patifaria a um cão, por causa da similitude de alguns sentimentos que com eles partilhava e não eram os que mais enalteciam a nobreza dos canídeos. O Pimenta entrara em derrapagem, numa depressão acelerada, agravada pela patologia do corno: «a mulher, muito mais jovem, desarvorou e, ao que se rosna, foi aquecer a cama dum actor», a do Marques, a quem o Pimenta antes pregara uma partida.
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Ao invés do Pimenta, o clarividente Púchkin aprovara o Senhor Mello, e sempre que o homem se anunciava na loja, o cão latia de forma reiterada, «reclamando pressa na abertura da porta». É o Mello que conta emocionado a história do ardina, do jumento e da couve, uma história de idílio, «da terna ligação entre o humano e asinino»: o animal que, habituado à couve que o ardina lhe dava todos os dias de manhã na esquina onde trabalhava, falecido o ardina, matou-se à fome, recusando-se a comer fosse o que fosse. Classicista que não gosta de se expor, mas o narrador fá-lo por ele, o Mello é outra das personagens que a narrativa detém, dentre o arco-íris de personagens que nela pouco se demoram – entram e saem ao sabor da excelsa divagação – mas que tatuam a grande história deste livro.

«Como considerava a entrada das personagens na cena da loja ou a sua simples passagem à frente da montra de uma grande riqueza, digamos… temática, comecei a orientar as notas do meu caderno anual para a produção destas histórias, que a leitora ou o leitor estão a ter a paciência de seguir. É a primeira colectânea mas, se a coisa correr, haverá mais no armazém», lê-se na página 90.

Cabe-me dizer ao Dr. Domingos Pintado que esperamos com mal disfarçada impaciência um novo tomo das suas histórias «recolhidas na loja e registadas nos canhenhos». Culpa dele por nos ter deixado adictos destas viagens. Exigência nossa no reencontro com a escrita arejada, elegante e inesgotável.


Pessoas, Animais e Outros que Tais – Narrações do Dr. Domingos Pintado, Pedro Baptista; editorial Campo das Letras; Porto 2006


© Teresa Sá Couto

2 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

oh.....que bom...
explico....

tinha vindo por aqui há uns dias e o blog não aparecia...:( só silêncio.

agora re.volto e ei-lo.
!!!!

re.digo: que bom.


beijo.

Teresa disse...

E que bom ter aparecido aqui, Isabel.Obrigada :)
Beijos
T.