quarta-feira, 22 de julho de 2009

Pintar a imensidão humana

O Deserto pintado existe de facto no mapa-múndi: é uma pequena zona do Sudoeste Americano, a 36º de latitude norte e 111º de longitude oeste, refere a escritora e pintora Isabel Cristina Pires na badana do seu livro de poesia «Deserto Pintado». Todavia, esta poética pintura tem, noutra combinação da longitude com a latitude, um outro lugar mais perto de cada um de nós e mais vasto: a imensidão interior do ser humano.

Recorrente na poética da autora, na exacta latitude surge o azul, cor que sintetiza a condição humana e o mistério original da criação: Porque deus é azul, /a Terra é uma esfera comovente. /Porque deus é azul, /a alma dos bichos voa em arco-íris. /Porque deus é azul /as árvores abraçam o olhar. /Porque deus é azul /há azuis que nunca entenderemos. /Porque deus é azul /existe o mar.
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Nascida em Pampilhosa, a 20 de Agosto de 1953, Isabel Cristina Pires é licenciada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Coimbra e Chefe de Serviço de Psiquiatria do Hospital Psiquiátrico do Lorvão. Desde 1987 que edita prosa e poesia com a chancela da Editorial Caminho. Interessada pela pintura, e autodidacta, faz trabalhos em acrílico sobre tela. Também na poesia, palavras e tintas carregadas de enigmas confundem-se, numa dança e convergência, e «Tela a tela se vai o corpo abrindo /à descoberta da cor.».
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O chamamento primordial
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Num exercício místico, a Natureza e a Alma seguem juntas, uma adquirindo propriedades da outra, revelando-se mutuamente. Feitas cordas umbilicais que nos ligam ao nosso início, as palavras declaram esse mistério:
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A túlipa do mundo desabrocha /feita de todas as palavras, do plasma macio /dos sentidos, da carne imediata de saber /que há nas coisas um coração radiante: esse algo /que nos avisa do abismo e emite /o azul do céu na exacta latitude. E queima /com as incertas incertezas que há no meio das árvores. / As palavras gelam o mistério, retiram-no /do musgo sombrio onde vegeta e vestem-no /de sons e de quase música.
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Desta forma surge o espaço, a textura, a cor e o som do Arizona – o silêncio das pedras, «um urro de absoluto ser» –, Canyon de Wild River, a montanha de Shiprock, Canyon de Chelly, o céu laranja de Monument Valley, o castanho-violeta da manhã, o ocre da terra, «a terra aberta pelo calor», a Lua na noite de Albuquerque, o infinito do planalto, a altura do céu e a entrega primordial: O tempo condensou-se /à minha volta, parei de respirar: /o antigo mar quer-me para si.
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Fecundidade e aridez, vida e morte
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A palavra é apresentada ora como matéria bruta ora lapidada em literatura, como que a mostrar que há paisagens áridas, mas também fecundas, que há vida e morte: se nalguns poemas a palavra surge emaranhada num exercício cultista – a palavra pela palavra em detrimento da significação do corpus do poema – noutros há que ela invade a brancura do papel para explodir no máximo do conceito criando imagens arrebatadoras. É, evidentemente, destes poemas que bebemos um lirismo quase místico que, também, espreita o segredo que poderá haver para lá da morte, ficando claro que o caminho se processa no retorno ou devolução à natureza:
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(...)O que se esconde atrás da lua? Quanta /ausência de amor é necessária /para que a vida desista e vá embora? /Pode-se morrer com uma corda, /com o futuro que se solta do veneno; /eu escondo-me debaixo do viver. /Há pouco andava pela cidade /sem entender um único sentido. /Eu estava morta? Viva? O que era isso? /Eu respirava e tudo era perdido.

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Estou neste lodo de amar quem me não ama /Como se passa para o outro lado da armadilha? /Como morre o amor a sua morte? /Quem pára a fábrica de oiro das estrelas?

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(…)A noite virá feita de escuro, /e rápida por dentro. Não sei /se é mundo o que está para além do mundo, /e o que se esconde na poalha das estrelas. /Quero ver azul quando morrer /no silêncio que há-de ser o meu. /Enquanto escrevo, morro assim feita de areia: /grão a grão, o tempo esculpe a estátua /de um corpo sem caminho.


Deserto Pintado, Isabel cristina Pires; editorial Caminho, Lisboa, Junho 2007

© Teresa Sá Couto

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