terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Os Olhos do Homem que Chorava no Rio


Há um tipógrafo que chora palavras, algures nas margens do rio Douro. Chora-as para o rio, e apazigua-se.
Há uma rapariga que, sentada na beira do rio, colhe, com «a concha das mãos dos olhos» sôfregos, palavras choradas pelo tipógrafo. Lê-as, e aprende a chorá-las, engrossando-se o caudal. E há o leitor, adicto, puxado para essa correnteza donde jamais quererá sair. Assim se cumpre o mistério: «Ler é tudo isso, afinal, e ainda gostar e continuar lendo, mesmo depois das lágrimas e dos sustos, das angústias e dos medos».

O livro Os Olhos do Homem que Chorava no Rio é um romance escrito a quatro mãos exímias: Manuel Jorge Marmelo e Ana Paula Tavares. É um livro de mistérios sobre o mistério das palavras. É impossível entrarmos nele sem que façamos, de imediato, parte dele. Ele aloja-nos na sua parte maior, a construção da nossa própria história. Um portento de originalidade. Um adejar de alma.

A escrita, como sacrifício e penitência é explanada no e pelo tipógrafo. Ele sabe todas as palavras, e todos os livros. É no rio da língua, onde empresta o coração, que as chora, «devagarinho entre soluços e pausas para respirar», lava-as, simplifica-as, liberta-as para leitores ávidos. As palavras, de todos os livros, são sempre as mesmas, remisturadas e recombinadas. Algumas são talhadas para a perfídia, outras para o colo e o mimo. É o escritor, o responsável pelos humores do rio, pela trama narrativa, por acender o lume das emoções. A rapariga que lê é o motivo último do tipógrafo. Sem ela, ele não existiria, pois «nenhuma das suas lágrimas seria lida».

A leitura como recriação é apresentada na rapariga que lê com sobressalto «as sílabas que se destacam da água, aumentando o ritmo ao fio das palavras, repete-as baixinho como se tivesse medo de as perder lê os fragmentos de histórias que completa todas as tardes». Ás vezes, «Num dia de mais palavras, um pequeno coração pode não caber no peito.». Outras vezes, «transita o corpóreo para um limbo qualquer, para um recanto inabitado onde se guardam as coisas que detêm os segredos do mundo.». São as vivências com as palavras que nos ensinam a chorá-las, a clarificá-las. Não será assim com todos os afectos?
Acompanhando quem escreve e quem lê, existe, ainda, uma «legião de Vultos», mais solares, ou mais sombrios. É por isso, que no meio das palavras, se ouvem «ecos de vozes, por vezes sombras de vozes, frases como bolhas de ar». Há que esperar pela música, o som perfeito do Adufe. Este som “mais-que-perfeito” acompanha toda a prosa poética desta história surpreendente, interlocutora com o mais fundo de nós.Resta-nos dizer que este livro imaginado só adquire a sua consistência no exterior, em nós seus leitores que lhe definimos o enredo:

Donde vêm as palavras? Que fundos têm? Que correnteza é essa onde elas se juntam e em vertigem estremecem-nos na fímbria dos nervos? Que legião de vultos é essa que vigia as águas e nos faz deitar ao rio de palavras, mais água de palavras, num caudal sempre insatisfeito?

Se sabemos que as palavras vêm do assombro, respondemos ao mistério com um círculo vicioso de mistérios. Um desafio para bravas emoções.
Este é, indubitavelmente, um livro para se ler de um fôlego. Teremos, depois, a certeza que o lemos mal, e necessitaremos de recomeçar. Há que lê-lo devagar e chorar cada palavra. Ao som da música que dele escorre, subiremos o rio, da foz até à fonte. Quantas vezes forem precisas. Quantas vezes quisermos construir a nossa história.

Os Olhos do Homem que Chorava no Rio; Ana Paula Tavares / Manuel Jorge Marmelo; Editorial Caminho, Lisboa, Janeiro de 2005

*elaborei este texto em 2005, na altura do lançamento do livro.

© Teresa Sá Couto

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A canção do povo português na mestria de Fernando Lopes Graça


Ritmos cardíacos de funda ancestralidade, as cantigas populares são retratos da alma de um povo. À procura dessa alma antiga, e da invenção melódica do povo – uma das formas mais difíceis de invenção artística –, o maestro Fernando Lopes Graça recolheu criticamente cantigas tradicionais de todo o país. É esse trabalho que encontramos coligido na soberba Antologia A Canção Popular Portuguesa Em Fernando Lopes-Graça.
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«Restituir ao povo a sua música» é, pois, a missiva, o apelo e a urgência deste prodígio editorial, organizado por Alexandre Branco Weffort, que aqui invoco, quando se celebram 103 anos do nascimento de Fernando Lopes Graça (17 de Dezembro de 1906), considerado um dos músicos e compositores mais significativos da história da Música Portuguesa e da Península Ibérica. A Antologia crítica faz-se acompanhar de um CDROM contendo exemplos sonoros de composições referidas na Antologia e registos ao vivo da voz e de actuações do próprio maestro. Voz, estudo, paixão e mestria de um homem que, do Minho ao Algarve, passando pela Beira Baixa (Castelo Branco e Fundão) e bebendo a singularidade melódica do Alentejo, soube interpretar e imortalizar a alma sonora antiga do povo português.
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Fernando Lopes-Graça nasceu em Tomar em 1906 e faleceu a 27 Novembro de 1994, na freguesia da Parede, Cascais. Deixou uma obra imensa, comprovando-se as suas palavras: “a música é a minha única religião” e “a Academia é o meu lar musical”. Dessa sua religião nos dá conta a Antologia de 450 páginas, e o CD, dois registos complementares para prazeres de conhecimento.
Bem organizada, a Antologia crítica está dividida em 5 capítulos e repleta de fotografias de Fernando Lopes-Graça, em várias fases da sua vida, bem como de regiões do país que ele tanto palmilhou para reabilitar sonorizando. No prefácio, Mário Vieira de Carvalho faz uma contextualização histórica política e cultural da época de Fernando Lopes-Graça e traça o percurso do maestro pessoal e artístico, porquanto se interferem, nomeadamente a sua iniciação política nos anos vinte e os tempos conturbados da década seguinte que o atiram para o exílio em Paris, a partir de 1937.

É longe da pátria que o “olhar melhor a alcança” e é do exílio – onde bebe a modernidade – que Fernando Lopes-Graça desenvolve o sentimento telúrico que a sua intervenção musical posteriormente comprovaria.
A Antologia colige textos do maestro, sobre o Folclore e a Música Popular Portuguesa, resultado do trabalho de prospecção feito de norte a sul de Portugal, escritos que, por isso, mostram a intervenção na realidade, e não apenas a reflexão distanciada. A partir da terceira parte da colectânea, reúnem-se as composições de Lopes-Graça - letras e partituras -, sobre a canção popular e o seu tratamento erudito, uma relação explicada assim pelo maestro:
As canções que ides ouvir roubei-as eu ao nosso povo, que tem um grande tesouro delas: e roubei-lhas, não para as guardar para mim, mas com o propósito de lhas restituir, possivelmente com juro do roubo. (…) Não lhas restituo, porém, tal-qualmente lhas roubei: fiquei com alguma coisa delas e, ao devolver-lhas, procurei que elas não ficassem diminuídas no seu valor, antes diligenciei aumentá-las com aquele pequeno juro que está nas minhas posses despender.
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O CDROM abre com a voz do maestro, num registo ao vivo. Oferecem-se quatro caminhos informativos: um esboço biográfico de Lopes-Graça; a listagem da sua obra musical – as grandes formações instrumentais, Música Coral, Música de Câmara, Piano, Voz e piano, instrumentos diversos – com títulos e datas de formação; A Obra Literária; A Canção Popular Portuguesa, com 16 páginas para consulta e sempre com exemplos sonoros dos vários temas, referenciados na Antologia, interpretados muitas vezes ao piano pelo próprio Lopes-Graça. São incluídos também vários registos inéditos, como o do Coro da Academia de Amadores de Música, sob a direcção do maestro, captado ao vivo em 1976.
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A Canção Popular Portuguesa Em Fernando Lopes-Graça, organização de Alexandre Branco Weffort; Editorial Caminho, Lisboa 2006

© Teresa Sá Couto

domingo, 13 de dezembro de 2009

Duas lições de Ondjaki

A alegria é uma coisa bonita que se sente no coração. E é bonita porque nos faz voar. Esta é uma lição para as crianças, impressa no novíssimo livro de Ondjaki, um voo de palavras límpidas numa festa de mágicos azuis pintalgados de encarnados, laranjas e amarelos das ilustrações de Danuta Wojciechowska. O voo do Golfinho é o terceiro livro infantil do escritor angolano que escreveu o mágico, indispensável e já clássico da literatura infantil Ynari – a menina das cinco tranças, também com ilustrações de Danuta Wojciechowska, adaptado ao teatro sempre e ainda com representações de sucesso, e, já neste ano de 2009, o livro O Leão e o Coelho Saltitão, com ilustrações de Rachel Caiano.

Este O voo do golfinho traz a história de um golfinho que sentia o chamamento de ser pássaro e, nas travessuras no azul do mar, dava asas ao sonho de rodopiar no azul do céu. No ensaio dos voos, num dia de mar liso, vê-se espelhado na água, com bico de pássaro, corpo de pássaro e olhar de pássaro. Reconhecendo ter um corpo diferente dos outros golfinhos, decide ir brincar perto das nuvens onde encontra muitos pássaros diferentes, melhor dizendo, muitos animais terrestres que, como ele, quiseram e conseguiram ser pássaros, souberam conquistar a liberdade: “Tu sempre foste pássaro?”, perguntei a um deles, muito colorido. “Não. Eu era uma serpente mas sempre quis ser pássaro.”. Outro tinha sido canguru outro tinha sido camaleão outro tinha sido gato.

O facto de a narrativa ser contada na primeira pessoa, pelo herói da nova aventura do Ser, da clareza vocabular, da cor e movimento das ilustrações, faz com que a metáfora chegue sem obstáculos ao entendimento das crianças, permitindo uma adesão imediata à mensagem cheia de asas: «e se todos tivéssemos o dom de mudar de corpo ao longo da vida? E se voar fosse mesmo possível para todos os que sempre desejaram ter asas?». Convenhamos que obras desta valia traçam as rotas certas do crescimento dos miúdos, ao mesmo tempo que nos lembram a importância de se ter sempre olhos de pássaro.

O voo do golfinho, Ondjaki e Danuta Wojciechowska; Editorial Caminho, 2009


Cinco tranças de conhecimento

Com três partes se faz uma trança, com cinco tranças aprende-se a viver. Ynari – A Menina das Cinco Tranças, que não se desfazem, é mais do que um livro. São 43 páginas encantadas, a essência da vida, gotas de crescimento. É um livro pequeno, para gente menor, mas a sua missão é uma causa maior que nos envolve a todos. Afinal, nem tudo o que é menor é uma coisa pequena: o coração é pequeno e cabe “tanta coisa lá dentro”.
Escrita por Ondjaki e ilustrada por Danuta Wojciechowska este livro é dedicado a “todas as crianças angolanas e para as crianças de todo o mundo e para ti, Angola” e urde uma história que decorre na Angola profunda, entre as cubatas, o capim e o rio, iluminada pelo desejo de conhecimento de uma menina que nega a insanidade da guerra.

Ynari é a nossa heroína que tem sede de aprender. Encontra, à beira do rio, um “homem simplesmente pequeno” que a ajuda a crescer. Ensina-lhe que “existem palavras que estão no nosso coração, mas não ainda na nossa boca”. Mostra-lhe como, quando e com quem as deve utilizar. Ensina-lhe que a palavra MEDO não deve ser empregue para aquilo que não faz mal, que ADMIRAÇÃO usa-se quando o céu está “cheio de estrelas para se contar” e que a CONFUSÃO acontece quando há sonhos cheios de "muitas pessoas e de muitas palavras".

No seu papel de mestre, o homem pequeno leva-a à sua aldeia de pessoas pequenas onde é apresentada a um "velho muito velho" que inventava palavras e a "uma velha muito velha" que destruía as que eram inúteis. Lá, aprende a palavra PERMUTA, a “troca que pode não ser do mesmo tamanho, cor, ou sabor”, mas que traz felicidade a ambas as partes. Lá, aprende a palavra MAGIA, ao ver que se podem transformar armas em barro; reconstrói a palavra EXPLOSÃO, que deveria caracterizar o choque das estrelas, a sua explosãode cores:”quando se sabe ver as coisas simples da vida descobre-se que o mundo é muito, muito bonito”.
Acreditando que os sonhos a ajudam a viver e empenhada em tornar INÚTIL a palavra GUERRA, parte à procura da sua magia, da construção da palavra PAZ. Com ternura e generosidade, desloca-se a 5 aldeias em guerra e sacrifica as suas 5 tranças, deixando cada uma em cada aldeia, através de uma permuta mágica e alquímica.
A lição final, apreendida por Ynari, é que o coração também inventa palavras como a AMIZADE, e a expressão “OLHAR O OUTRO”. A mensagem de fraternidade provoca-nos um arrepio que desperta em nós a verdade e a pureza primordiais: “Primeiro somos crianças e coração bate. Depois somos caçados por nosso coração. Depois descobrimos criança no coração”.

A partir da fórmula introdutória “Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas…”, o leitor jamais se esquecerá deste livro. Ficar-lhe-á na alma, para sempre, o eco deste grito puro, tão soterrado pela competição e individualismo, a que nos escravizou a época moderna. Ondjaki diz que para escrever esta estória teve de “espremer um sonho”. Cabe-nos incentivá-lo, em todas as gotas, para que muitas se reúnam num rio pujante que nos transporte, finalmente, no seu caudal de generosidade.

Ynari – A Menina das Cinco Tranças, Ondjaki e Danuta Wojciechowska; Editorial Caminho, 2004

© Teresa Sá Couto

(a um jovem avô)

Uma invenção triangular

A semente da criação pode dar uma belíssima história. A ideia é simples e, talvez por isso mesmo, surpreendente. O Cão Triangular começou em desenhos de Evelina Oliveira. E foi crescendo, pois assim são as ideias, até que a vida pictórica do animal pediu uma narrativa em palavras, isto é, o cão triangular pedia companhia. Maria Leonor Barbosa Soares abraça o projecto e explica às crianças a alquimia: «É por isso que é bom trabalhar em colaboração com outra pessoa. Aprende-se mais depressa, fazem-se coisas que não seríamos capazes de fazer individualmente e é muito divertido. A Evelina e eu sugerimos que experimentes também.».

Assim nasce uma história sobre a diferença e a amizade, contada pelo protagonista, um cão com corpo em forma de triângulo, «azul-turquesa de dia, fluorescente ao luar, que não parece assemelhar-se a seja o que for, bonito ou feio», que teve de aprender a gostar de si e a «aproveitar ao máximo todas as capacidades e qualidades» do seu corpo diferente do dos cães comuns. Nas andanças, o cão triangular acaba por encontrar um rapaz de cara triangular, sozinho, como ele, e conhecedor do medo pelas mesmas razões que ele. Um grande pássaro amarelo e hexagonal acaba por se juntar aos dois amigos e os três descobrem que a sua força triplicava.

Evelina Oliveira - que ilustrou, entre muitos outros, o Zé do Saco de Manuel Jorge Marmelo, Zeca Afonso, o andarilho da voz de ouro e A coragem do General sem Medo, ambos de José Jorge Letria - cria as ambiências de solidão, desamparo, tristeza, alegria e afago, enche as páginas de cor, movimento, expressividade e cumplicidade com os jovens leitores, como é seu apanágio.

Coloquial, Maria Leonor Barbosa conta, de forma simples, as vicissitudes do cão na demanda da felicidade, o espanto e o júbilo da descoberta de novos amigos, degraus da sua  robustez, enceta diálogo directo com os leitores, estratégia que ora permite a identificação com as vivências dos miúdos que se sentem excluídos, ora veicula uma lição de carinho, compreensão e respeito pelos animais: «Foi um momento verdadeiramente extraordinário. Só então percebi como eu queria ter dono e como me tinha custado andar sozinho! Seria capaz de seguir aquele menino fosse para onde fosse... como um cão! Estavas à espera que eu dissesse outra coisa, não era? Mas não posso dizer melhor, acredita. Compreendi a minha realidade de cão naquele momento ou, dito de outra maneira, percebi o que queria da vida: uma matilha ou um humano em quem pudesse confiar e merecesse o meu respeito e que, por sua vez, me acarinhasse e respeitasse.».

O Cão Triangular, Evelina Oliveira e Maria Leonor Barbosa Soares; Campo das Letras, 2009

© Teresa Sá Couto

sábado, 12 de dezembro de 2009

O legado de um andarilho

(texto editado no sítio da Orgia Literária em 08.12.09)

As Voltas de um Andarilho – Fragmentos da vida e obra de José Afonso de Viriato Teles: eis um documento raro sobre um sonho agarrado à vida concreta, firmado no telurismo português e braços estendidos a outros lugares do mundo onde despontava a utopia; uma voz sobre uma das vozes da resistência ao fascismo, que rasgou as sombras e iluminou quem nelas vivia; um diálogo entre gerações sobre «o que faz falta», o idealismo, a persistência na luta pela Liberdade.

«Mais uma vez, a luz. Mas aqui, desta vez, sem misticismo. Para o Viriato tratou-se só de erguer a lâmpada sobre as extraordinárias funções do Zeca, e nisso encontrar quem nós temos saudades de ser», diz Sérgio Godinho no Prefácio titulado «A que distância está o Zeca?». E luz é o substantivo genesíaco que nomeia esta obra alagada de memória, que palavras emissárias e imagens perpetuam, para grande felicidade nossa. Na base, uma segura, minuciosa e depurada investigação da vida de José Afonso, que casa factos reais com lugares interiores, só mensuráveis pelo tempo, porque é a narração do tempo que aqui encontramos, o tempo social, político, insurrecto. Depois, a mestria da composição, marca iniludível da escrita de Viriato Teles, que transforma entrevistas e reportagens em edifícios sensoriais e de comprometimento ímpar com o leitor.

Editada em 1999, e esgotadíssima, a obra é republicada pela Assírio & Alvim «com algumas actualizações, correcções e acrescentos», assim dito por Viriato Teles. Clara é também a missão que o jornalista e escritor cumpre soberanamente: «participar, tanto quanto possível, na luta contra o esquecimento, que é como se sabe um dos vícios portugueses mais comuns».

A voz e o legado

Além da história da vida de José Afonso, Viriato Teles transmite-nos um exemplo de vida de quem fez do compromisso com o seu tempo uma forma de se manter vivo. Um exemplo testemunhado por Viriato, pelo estreito contacto com Zeca, documentado nas entrevistas que lhe fez e nos encontros «sem marcação nem “agenda” prévia, ao sabor dos acasos e das lutas».
Desvenda-se na raiz o homem nascido para encarnar uma aspiração que tatuou numa existência andarilha, mobilizado pelo apelo solidário do Outro, na demanda da «irmandade». O «trovador de muitos sonhos», que, nos anos 60, em Coimbra, criava baladas e «abria uma revolução musical e poética que abalou a estrutura da canção ligeira portuguesa», cedo terá percebido que a música seria uma forma de chegar às populações. A esta juntou o gosto de «ensinar os filhos dos outros», com a leccionação em História e o envio de recados através das aulas.

«Um provocador, por instinto», refere Viriato Teles. «A música é comprometida quando o músico, como cidadão, é um homem comprometido», e «o que é preciso é criar desassossego»; «acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de “homenzinhos” e “mulherzinhas”. Temos é que ser gente, pá!», diz Zeca, regista-o Viriato, dizendo-nos também que Zeca se esquivava constantemente a falar de música, sendo ela o ponto de partida para outras divagações:

«Praticamente nunca canto por gosto», diz Zeca em 1980, «Prefiro estudar, agradar-me-ia tirar outro curso, às vezes até me passa pela cabeça que gostava de mudar de personalidade, como as personagens de Pirandello». Eram (e são) caminhos de um homem livre que «vive na recusa do oportunismo, na análise permanente das suas posições, na interrogação constante», portador da consciência contra o conformismo, «um verdadeiro e incorrigível independente»; era o timbre de um homem livre, que afirmou ser o seu próprio “comité central”, que decidiu, em 1985, apoiar a candidatura de Maria de Lurdes Pintassilgo à Presidência da República, que apoiou as lutas anti-imperialistas na América Latina, que se ligou a «grupos de apoio à Reforma Agrária, nomeadamente na Alemanha e na Holanda» e fez parte do Comité Central de Apoio à Frente Polisário.

Com a destreza que lhe é característica, Viriato Teles capta e regista em breves linhas a síntese perfeita do homem José Afonso: Zeca, na sua casa em Azeitão, «simultaneamente bem-disposto e mordaz, por vezes até impiedoso”, perante o “perguntador”», entre a viola, a um canto, um retrato de Che Guevara, na parede, e «uma faiança com o texto de Grândola Vila Morena», a encher o espaço todo.

É sobre este homem que, com alguma vergonha pela iniquidade lusa, vem a lição da Galiza: a grande homenaxe, uma «festa rubra, viva e alegre», em Maio de 1987, “um testemunho de solidariedade”, uma lição que culminou, em Maio de 2009, com a inauguração, em Santiago de Compostela, do Parque José Afonso, perto do local onde, em 10 de Maio de 1972, Zeca cantou pela primeira vez em público Grândola Vila Morena.

Por cá, a intemporalidade das suas mensagens clareia-se no interesse das novas gerações de músicos e nas constantes versões das suas cantigas. Na «Discografia Anotada» do autor de Os Filhos da Madrugada, Viriato Teles mostra-nos o «Zeca para além de Zeca», o registo dos intérpretes de Zeca até à actualidade, desde Adriano Correia de Oliveira, que interpretou a Balada da Esperança, em 1961, até Rão Kyao, com os temas Balada de Outono e Menino d’ Oiro, de 2009.

As Voltas de um Andarilho – Fragmentos da vida e obra de José Afonso, Viriato Teles; Assírio & Alvim, 2009


© Teresa Sá Couto


* Ver toda a informação disponível sobre este livro, e uma entrevista a Viriato Teles, AQUI

*Outros textos meus sobre outros livros de Viriato Teles, AQUI

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O regresso de Albert Cossery

A Antígona acabou de distribuir a sua prenda de Natal. Uma magnífica prenda. A editora divulgou as primeiras páginas do romance inacabado de Albert Cossery, por morte do autor, aos 94 anos, em Paris, em Junho de 2009, no hotel onde viveu mais de sessenta anos. De Albert Cossery, a Antígona tem publicados, e disponíveis: A Casa da Morte Certa, A Violência e o Escárnio, As Cores da Infâmia, Mandriões no Vale Fértil, Mendigos e Altivos, Os Homens Esquecidos de Deus, Uma Ambição no Deserto, Uma Conjura de Saltimbancos e , de Michel Mitrani, Conversas com Albert Cossery.




Uma época de filhos de cães

Mokhtar sentou-se na esplanada de um café de aspecto sórdido, mas cujo rádio difundia uma melodia da cantora mítica que lhe fazia lembrar Malika, a sua mãe, que não podia ouvir este lamento de um amor perdido sem que os olhos se lhe marejassem de lágrimas. A esta hora matinal, para além de um jovem adormecido sobre um banco, como um destroço rejeitado pela noite, o local proporcionava uma calma, sem dúvida precária, mas por agora propícia à reflexão. Evidentemente, não estava nas suas intenções reflectir de novo sobre a perenidade da estupidez humana, nem vituperar os lastimáveis dirigentes deste mundo, pois todos estes indivíduos se encontravam há muito esgotados e não eram merecedores de qualquer outra crítica mais aprofundada. Numa palavra, o que ele desejava de imediato era um recanto tranquilo onde pudesse recordar – antes que perdesse todo o sabor – o incidente burlesco que precipitara o seu despedimento do lugar de professor de uma escola de um bairro popular da cidade costeira, considerada histórica, a que chamam Alexandria. Tudo começara por uma discussão sem motivo aparente com o director do estabelecimento escolar, um homem pleno de ignorância e, ainda por cima, casado com uma mulher feia. Esta dupla particularidade tornava-o detestável e intolerante nas suas relações com as pessoas inteligentes e solteiras. Após algumas insinuações pérfidas acerca da concupiscência ligada ao celibato, este gerador de crianças degeneradas acusara-o de ter feito esquecer aos seus alunos, no espaço de alguns meses, o que eles haviam demorado muitos anos a aprender. Mokhtar, nada surpreendido com este elogio que considerava absolutamente merecido, não pôde resistir à tentação de dar uma estocada definitiva e global na hierarquia, mesmo que esta fosse de medíocre qualidade. Respondeu com um tom de comiseração, como se estivesse a dar os pêsames a um viúvo amargurado, que os seus alunos tinham mesmo assim aprendido uma coisa muito importante para o futuro: que o director desta escola era um burro, e que era preciso substituí-lo por um burro de verdade, certamente mais agradável de contemplar. Para qualquer espírito livre dos preconceitos seculares de sacralização do homem, era evidente que tratar um humano de burro constituía um insulto para o burro. Mas o director, incapaz de assimilar uma doutrina tão audaciosa, pôs-se a gritar que um louco estava a querer degolá-lo, atraindo com os seus berros uma matilha de salvadores benévolos que agarraram Mokhtar e o atiraram, com as imprecações habituais, para fora da escola.

A Mokhtar não desagradou esta expulsão brutal, que lhe conferia um estatuto de dissidente político e de mártir da liberdade de expressão, capaz de suscitar o interesse, para além dos mares, dos intelectuais dos ricos países democráticos. Estes bravos pensadores, adeptos de um humanismo sem fronteiras, tinham a faculdade de tornar célebre a pessoa mais insignificante do planeta, desde que esta tivesse sofrido alguns vexames ou alguns meses de prisão por parte de um governo qualificado, para a circunstância, de ditadura sangrenta. Esta ideia divertia-o como uma enorme brincadeira. Por um momento, entreteve-se com a perspectiva de um exílio dourado em terra estrangeira, solicitado e adulado por todas as cabeças pensantes do hemisfério ocidental. Tratava-se, e ele tinha consciência disso, de uma apoteose longínqua, e mesmo improvável, pela simples razão de que o género de dissidência de que era o genial inventor nada tinha em comum com uma oposição a qualquer governo. A Mokhtar todos os governos eram completamente indiferentes, fossem eles eleitos ou impostos pela força das armas, pois todos provinham do mesmo molde e eram compostos pelos mesmos malfeitores. Era, pois, estúpido querer derrubar um governo, para depois ficar diante de outro pior do que o anterior. E na obrigação de recomeçar indefinidamente esta comédia grotesca. Para Mokhtar, a única maneira de combater um regime político só podia conceber-se no humor e no escárnio, longe de toda a disciplina e das fadigas que qualquer revolução geralmente implica. Na verdade, tratava-se de conseguir uma distracção fora das normas e não uma prova debilitante para a saúde. O seu combate contra a ignomínia reinante não tornava necessário um grupo armado nem mesmo uma sigla que referisse a sua existência. Era um combate solitário, não uma congregação de massas ululantes, mas uma operação prazenteira de salvação da humanidade, sem lhe pedir a opinião e sem esperar uma autorização vinda do céu. Há muito tempo que Mokhtar decidira que o seu papel na vida seria o de dinamitar o pensamento universal e os seus miasmas fétidos que atulhavam há séculos o cérebro fraco dos miseráveis. Esmagadas e fragilizadas, as massas humanas ainda sobreviventes à superfície do Globo foram levadas a acreditar em tudo o que lhes conta uma propaganda que ofende em permanência a verdade. Afigurava-se-lhe com nitidez que o drama da injustiça social só desaparecerá no dia em que os pobres deixarem de crer nos valores eternos da civilização, um palmarés de mentiras deliberadas, programado para os manter para sempre na escravidão. Por exemplo, a honestidade. Os pobres estão convencidos de que a honestidade é a virtude fundamental que lhes vai salvar a alma das chamas do inferno, e esta crença condena-os a uma miséria endémica, enquanto os ricos, cujos antepassados inventaram a palavra, sem jamais terem acreditado nela, continuam a prosperar. É certo que esta análise, aparentemente pueril, da economia capitalista, não satisfará os espíritos sérios, inimigos implacáveis da verdade, porque o seu simplismo impede-os de parecer profundos. Três meses antes, quando se candidatou a este lugar de professor, Mokhtar não ambicionava de maneira nenhuma ser profundo em matéria de ensino. Professor era o emprego ideal para começar a pôr em prática a destruição do discurso pernicioso habitual em todos estes continentes, cuja tradicional impostura é proclamarem-se civilizados. Com efeito, a escola proporcionava-lhe uma ocasião magnífica para influenciar jovens alunos, mais dispostos à subversão do que os adultos anestesiados de longa data pelo vocabulário dominante. A indignação do director deu-lhe a certeza de ter sido bem sucedido, pelo menos em relação a uma parte ínfima da população, mas este magro resultado representava uma carga explosiva, manipulada por três dezenas de adolescentes dotados de uma consciência renovada, e que se preparavam para prodigalizar por todo o lado o seu novo saber. Mokhtar via este bando de alegres missionários crescer e disseminar-se por todos os países e, porque não, além-fronteiras em direcção às tristes cidades do Sul moribundo.

A visão deste futuro mirífico foi bruscamente perturbada pelos latidos de um cão que dava a impressão de ser de uma espécie rara, desconhecida no bairro. Havia nestes latidos uma notável dose de insolência e como que um desafio lançado contra sabe-se lá que raça maldita. Subjugado e seduzido por este desempenho, Mokhtar dispôs-se a procurar o animal com a intenção de o adoptar, caso ele tivesse fugido a um dono autoritário e mal-educado. A ideia de passear com um cão pela trela enchia-o já de júbilo como um ataque subtil ao mito insuportável da supremacia do homem. Pôs-se assim a inspeccionar a esplanada, mas, em vez de um encontro amigável com um membro eminente da raça canina, foi ofuscado por um esplendor de cores cambiantes sob os raios pálidos de um sol de Inverno, bruscamente surgido de entre as nuvens, como que para participar neste surpreendente espectáculo feérico. O responsável por esta intrusão excêntrica da moda, símbolo da modernidade, no cenário imundo da esplanada, era um jovem dos seus vinte anos, de físico atraente e porte aristocrático, sentado a uma mesa à entrada do café, e que exibia uma panóplia vestimentar de grande ousadia na escolha dos tecidos e das cores. Este jovem esteta envergara, para uma visita turística nestas paragens deserdadas, calças de linho branco, camisa de seda vermelha, bem aberta no peito, e casaco preto de caxemira, com um pequeno ramo de jasmim na botoeira. Para completar este traje magnificente e requintado, calçava sapatos de verniz, como os que usam os ministros e os proxenetas quando vão à ópera. Mas as originalidades deste enviado do diabo não se ficavam por aqui: estava a fumar um cigarro de haxixe, cujo fumo parado desenhava uma espécie de auréola sobre a sua cabeça.

Perante esta cena inusitada, Mokhtar aguardou calmamente o que se ia passar a seguir, estranhamente consciente de que este príncipe da elegância, perdido neste lugar, tinha para lhe transmitir uma mensagem da mais alta importância. Dir-se-ia que o portador da mensagem se apercebera desta expectativa e que estava pronto para lhe responder, pois, sem mais delongas, abandonou a sua pose descontraída, endireitou-se na cadeira, ergueu os olhos ao céu, e depois, com a determinação do cantor que entoa a ária que o celebrizou, pôs-se a ladrar com um tom implacável e obstinadamente sarcástico, parecendo assim exprimir a sua raiva para com os habitantes da casa em frente. Passado um momento, parou com os latidos e virou-se para Mokhtar, visivelmente satisfeito com a sua proeza.

Mokhtar aplaudiu discretamente para não acordar o homem adormecido no seu banco, único elemento de realidade tangível que o impedia de ficar alarmado. Sem qualquer dúvida, estes latidos continham um sentido oculto que ele tinha de decifrar o mais rapidamente possível, mas o imitador de cães furiosos não lhe deu tempo para isso ao desferir-lhe a seguinte frase insensata:

- Estava certo de que compreenderias.
- De onde vem essa certeza? – perguntou Mokhtar. – Gostaria muito de conhecer as razões dela.
O jovem pimpão, que se chamava Haydar, levantou-se para se ir sentar a uma mesa junto de Mokhtar e começou a falar com um tom fortemente caloroso, como se pretendesse cativar o seu interlocutor com vista a uma cumplicidade eterna.
- Passava por aqui, guiado apenas pelo acaso, quando te vi sentado, sozinho, neste café piolhoso. Mas, em vez da tristeza e do abatimento do solitário, pairava nos teus lábios um sorriso muito especial, o género de sorriso malicioso que é um desafio à infâmia universal. Sentias-te mais poderoso do que algum monarca jamais foi. Isto levou-me a pensar que tinha obtido a tua compreensão.

Tradução: Luís Leitão
Revisão: Carla da Silva Pereira

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Portalegre recebe pintura de Isabel Botelho

Passagens Secretas é o título da exposição de pintura de Isabel Botelho, na cidade de Portalegre. Depois da exposição Beautiful Unknown, no Palácio Galveias, em Lisboa, em Fevereiro de 2009, a pintora volta a espargir magia com novos trabalhos.
Inaugurada a 28 de Novembro, a exposição surge dividida e, consequentemente, de fulgor ampliado, em duas galerias: Passagens Secretas I, na Galeria do Museu da Tapeçaria de Portalegre, Guy Fino e Passagens Secretas II, na Galeria de S. Sebastião, no Edificio da Câmara Municipal de Portalegre. Para ver até 17 de Janeiro de 2010.

Agradeço à pintora Isabel Botelho o envio das fotografias da inauguração, já que não pude estar presente. Ver os trabalhos da exposição, AQUI, na página de Isabel Botelho.


.Deixo, ainda  a digitalização da minha nota que acompanha oficialmente a divulgação da exposição:


(clicar na imagem para aumentar)

Esplendor infantil de Carla Almeida

Ainda falta muito? é o terceiro e mais recente livro infantil de Carla Maia de Almeida, mais uma marca de um estupendo percurso nas letras para os mais novos, que urge aqui apresentar.
A história deste “capítulo” é simples; a composição – pureza narrativa e ilustrações de Alex Gozlau – é arrebatadora. Primeiro a verosimilhança com a situação narrada, o que possibilita a cumplicidade com os jovens leitores e a partilha intergeracional: conta-se uma viagem de automóvel feita por dois adultos, pai e mãe, com os dois filhos pequenos, um rapaz e uma rapariga. O objectivo é visitar os avós a uma aldeia distante e de ambiência distinta do local onde as crianças habitam.

A imobilidade imposta no banco traseiro da viatura faz com que a viagem seja um tormento para as crianças. Ainda falta muito? é a pergunta que o miúdo mais pequeno coloca constantemente. Será a irmã, um pouco mais velha, a narradora da história da impaciência e a veiculadora da memória guarda que, nos seus tenros anos, já acumulou. Segue-se a narrativa, passos de crescimento, irrupções de júbilo, registos de afectos, projecções de futuro.

«O meu irmão ainda é muito pequeno. Só quer atenção e mimos. Não se lembra da aldeia, nem do cão chamado Roger, nem dos gatos que eram primos. E assim não podemos conversar. Mas depois, Como é que era? Como é que eu podia pensar? Como é que eu conseguia estar a sós com a minha imaginação? Aindaaaaaaaa faaaaaaaalta muuuuuuuto?, diz ele, quase a gritar», lê-se, ao mesmo tempo que se mostra que, afinal, uma viagem longa pode ser emocinante, bastando tão-só o motor veloz da imaginação. As ilustrações, que juntam brilhantemente fotografia e pintura, enchem as páginas de cor e expressividade.

Ainda Falta Muito?, Carla Maia de Almeida (texto) e Alex Gozblau (ilustrações); Editorial Caminho, 2009

Titula-se Não quero usar óculos, é o segundo livro infantil de Carla Maria de Almeida e atesta que o segredo da genialidade está em inventar a simplicidade. Ora vejamos: um miúdo fica a saber que tem de usar óculos. Enquanto os espera, vai discorrendo sobre as formas das armações, pondo em cada hipótese os desejos com que se liga ao mundo. As ilustrações de André Letria objectivam a narrativa textual, e o festim pictórico que corre em páginas inteiras, instigando a criatividade do leitor.

Com efeito, a arte ao serviço das crianças está em trinta e duas páginas de cartolina, envolvidas por uma capa dura, carregam o espanto da arte literário e plástica, que junta palavras e imagens e cor ao serviço no incentivo desenvolvimento, intelectual, emocional e artístico das crianças. Conta-se a breve história, de forma límpida e de fácil identificação ao universo infantil, de um rapaz que vai a um médico «com um nome comprido: O-F-T-A-L-M-O-L-O-G-I-S-T-A», e fica a saber que tem de usar óculos. Enquanto os espera vai imaginando o seu formato: balizas, pois um dia quer ser guarda-redes; à maneira dos piratas, pois há-de ser «um terrível pirata»; guarda-chuvas, para poder andar à Chuva.

Comprovando-se que, quando libertada, a imaginação corre sem limites alimentando-se do próprio voo, o rapaz logo imagina óculos especiais que lhe permitam uma eficaz aproximação da natureza, das árvores, do mar, e de óculos para ver ao longe. Uma alegoria numa lição também para muitos adultos que “precisam de óculos” para poderem ver e, consequentemente, respeitar o meio ambiente, e poderem ver o «longe» do futuro. O rapaz da história também projecta óculos para «entender certas coisas» que lhe dizem não ser para a sua idade.

Preenchendo totalmente as páginas, com cores fortes e contrastantes, dinamizadas, pelo movimento das cerdas do pincel que ora espalham, em lastro, a tinta no fundo, ora se detêm, deixando nos pormenores o mesmo testemunho do processo de criação, André Letria vai construindo uma montra de óculos com narrativas do mundo interior infantil, que muitas vezes não divisamos. Também neste sentido, este é um livro de partilha entre pais e filhos, de revelações e deslumbramentos.

Não quero usar óculos, Carla Maia de Almeida (texto) e André Letria (ilustrações); Editorial Caminho, Lisboa, 2008

O Gato e a Rainha só é o livro de estreia de Carla Maia Almeida, um livro encantado que multiplica encantamentos, destinado a crianças a partir dos 8 anos. Fala de um gato que «Nunca tinha ido à Lua, mas pensava muito no assunto». «O mundo não é como vem nos livros – é muito mais redondo!»: palavras sábias a que se juntam as portentosas ilustrações Júlio Vanzeler, tudo a lembrar-nos que um livro pode ter as coordenadas, os instrumentos e os impulsos para se explorar o mundo.

Depois da casa destruída por um incêndio, o gato Radar é obrigado a recomeçar a vida. Parte à procura de uma nova casa para morar, «que tivesse cheiro, memórias….». Começa aqui a estrada da aprendizagem: há dor em qualquer recomeço porquanto se carrega o que se teve e se perdeu, acrescido do medo do desconhecido e do desnorte dessa nova empreitada. Todavia, a vida é uma «sopa de tudo» e, havendo fome, há que tomá-la. Assim se vê o gato (e os leitores) pelos caminhos do mundo que vinham ter com ele, e pelos quais seguia sem pensar, até encontrar uma encruzilhada com três tabuletas, cada qual indicando um caminho misterioso; cabia-lhe a difícil opção de escolher pela Terra da Água Salgada ou Terra do riso Eterno ou Terra do silêncio Prometido. Na Terra do Riso Eterno só era permitido rir. Auscultando-se, considerou que «Pior do que chorar quando se está triste, só mesmo obrigar-se a rir quando não se tem vontade.». Mostra-se que muitas vezes se escolhem caminhos mais empurrados pela intuição do que ditados pela razão: porque razão o gato escolheu a Terra do Silêncio Profundo? «ele não sabia porquê, mas sabia porque sim. Era o bastante para continuar a andar.».

Andando, encontra a Rainha Só, que deixou de o ser quando cativada pela amizade do novo amigo. No entanto, o gato mostra-nos o valor e a importância de se estar só: «às vezes também precisava de se sentir um Gato Só. Era bom poder miar alto, sem ter de explicar o que estava a dizer. Apenas a miar. Por incrível que parecesse, miar alto podia ser melhor do que comer chocolate em pó às colheradas ou afiar as unhas no sofá preferido dela. E era uma coisa tão fácil de fazer! Com tantas conversas e brincadeiras, quase se tinha esquecido. Decidiu que, a partir dali, haveria um dia DMA (Dia de Miar Alto) sempre que fosse necessário.».

Seres muitos diferentes, – mas, como o gato diz, não teria graça nenhuma se fôssemos todos iguais – a Rainha e o gato decidem partir juntos à procura de nova casa. Ela já pode prescindir das suas chaves pesadas, que carregava ao pescoço, por deter as chaves leves do espírito; abandona a sua «máquina-de-costurar-palavras», que se lhe afigura inútil por não conseguir dar respostas sobre o sonho e a aventura humana, pois sabe que só ela pode encontrar as respostas.

O gato e a Rainha Só, Carla Maria de Almeida; ilustrações de Júlio Vanzeler; Editorial Caminho, Lisboa 2005

© Teresa Sá Couto