sábado, 11 de setembro de 2010

Os «102 Minutos» do centro do Horror

Nove anos depois do terrível 11 de Setembro, recupero um texto que produzi em 2005 sobre um livro que reconstrói, minuto a minuto, o ataque às Torres Gémeas do World Trade Center – desde o embate do primeiro avião contra a primeira torre, às 8h46, até à queda da segunda torre, às 10h28.

Mostrar o interior, do exterior que todos presenciámos na televisão, é a grande novidade do 102 minutos; os autores, dois repórteres do jornal New York Times, Jim Dwyer e Kevin Flynn, colheram testemunhos de sobreviventes da catástrofe, pesquisaram centenas de entrevistas e transcrições de comunicações via rádio e telefone para que fosse recriado, o mais fidedignamente possível, o ambiente vivido no interior dos dois edifícios.
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Este 102 Minutos, com o subtítulo A história desconhecida da luta pela sobrevivência no interior das Torres Gémeas, contém, logo a abrir, uma lista de «352 pessoas no World Trade Center» – funcionários, visitantes, elementos da Administração Portuária, bombeiros, polícias, entre outros, envolvidos na catástrofe; segue-se uma «Nota dos Autores» datada de Setembro de 2004; um Prólogo – a abrir com a primeira pessoa a chegar ao escritório no 89º andar, na Torre Norte, às 8h30, uma mulher sobrevivente e que foi entrevistada pelos autores no ano de 2003; o corpus da narrativa da tragédia em 14 capítulos, com o 1º capítulo a iniciar-se às 8h46, na Torre Norte, e o 14º a finalizar ao 102º minutos; um Epílogo – o Nível Zero às 11h00; uma Lista de 126 pessoas que, de entre os 2.749 mortos, estão mencionadas no livro; Notas e Agradecimentos.
No decurso da exposição são apresentadas diversas gravuras representando o espaço exterior das torres, e estrutura interior, além de esquemas dos embates dos aviões, todos documentos explicativos que foram editados no New York Times.
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É também feita a história desde a concepção e construção das torres, as polémicas e os riscos anteriores ao fatídico 11 de Setembro. As consequências de um choque de um avião contra uma das torres tinham sido encaradas pelos que se opunham à sua construção de tal forma que esses opositores publicaram um anúncio no New York Times com a visão sinistra de um avião a embater na fachada norte da torre norte. A Administração Portuária, proprietária dos edifícios, respondeu que «os cálculos dos seus engenheiros e as simulações em computador demonstravam que o embate de um avião provocaria estragos em sete andares, mas o edifício permaneceria de pé.». No dia 7 de Novembro de 1982 as entidades oficiais “provocaram um desastre” numa das torres, a que responderam os Corpos de Policia e Bombeiros, bem como de Serviços de Emergência Médica e Administração Portuária. Tudo isto suscitado pela eminência de um acidente ocorrido no ano anterior: «um avião de carreira argentino, por problemas de comunicação com os controladores de tráfego estivera a noventa segundos de chocar com a torre norte, sem envolvimento de terroristas». Fala-se no atentado de 1993 e no alerta de Guy Tozzoli, Director reformado do World Trade Center, feito numa audiência com a assembleia legislativa, «que a cidade deveria preparar-se para uma catástrofe do género. Porém, ninguém lhe deu ouvidos» e, mesmo com a nova administração Giuliani, não foram feitos exercícios que envolvessem entidades conjuntas no edifício. As lutas intestinas, de ordem financeira, entre a Câmara e a Administração Portuária inviabilizavam acções concertadas.
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A falta de comunicação entre entidades atingiu o ponto bizarro no 11 de Setembro: «Pelas 9h15, cerca de meia hora depois do embate do primeiro avião» perguntava-se ao chefe de bombeiros, sobre o plano de execução dos helicópteros; porém, «embora o município tivesse adquirido rádios para possibilitar a comunicação entre bombeiros e policias, os responsáveis dos dois organismos não conseguiram pôr-se de acordo quanto à escolha da frequência. Portanto nunca puseram os rádios em uso».
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Enquanto isso, cerca de mil pessoas que sobreviveram ao embate do Voo 11, esperam no cimo da torre norte, por não terem encontrado uma saída desobstruída. «O destino daquela gente fora traçado quatro décadas antes, quando as escadas foram agrupadas no centro do edifício», e eliminadas as de serviço por terem sido consideradas um desperdício. Noutro lado a entrega à morte parece surgir como libertação : Kely viu as chamas avançar pelo poço do elevador. «Pensou inalar profundamente o fumo, matar-se antes das chamas o alcançarem»; «a necessidade de respirar era tão premente que as pessoas empilhavam-se às janelas», outras mergulhavam no vazio para fugirem «de um inferno de combustível a arder (…) não tinham de abrir caminho por entre as chamas».
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102 Minutos, Jim Dwyer e Kevin Flynn; tradução de Saul Barata; Editorial Presença, Lisboa, Setembro de 2005
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© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O desejo das palavras de Leonard Cohen

Confessional, intimista, espiritual, lúcido, irónico, Leonard Cohen apresenta-se-nos em Livro do Desejo - Book of Longing, no original - com letras arrebatadoras, reconstrói memórias, detém-se em sonhos e perdas, observa a passagem do tempo no corpo e na alma, interpreta o mundo, dialoga com a vida. São poemas e textos em prosa, ilustrados com desenhos do próprio Cohen, feitos durante os vinte anos que esteve sem publicar, um «Atraso» dito assim: «Consigo aguentar bastante; não falo /enquanto as águas não transbordarem das margens /e rebentarem a represa. //Daí ter sido capaz de atrasar este livro bem para lá/do final do século XX.».
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(clicar na imagem para aumentar)
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Publicado entre nós em 2008, com justas honras mediáticas, o Livro do Desejo é uma edição bilingue, tem a chancela das extintas edições Quasi e tradução de Vasco Gato. A obra foi base do espectáculo A Song Cycle Based on the Poetry and Images of Leonard Cohen, de Philip Glass, e alguns dos poemas foram adaptados a canções. Agora, no seu regresso a Lisboa (a 10 de Setembro), este título recorda-nos que o canadiano nascido em 1934 antes de ser cantor foi poeta - com o primeiro livro de poemas, Let Us Compara Mythologies, em 1956, a que se seguiram doze livros, entre os quais dois romances - e é, indubitavelmente, essa corrente primeira a geratriz da magia que recebemos ao ouvir as canções de Leonard Cohen.
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quatro poemas:
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Corpo de Solidão
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Ela entrou no meu pé com o pé dela
e entrou na minha cintura com a neve dela.
Entrou no meu coração a dizer,
"Sim, é isso mesmo."
E foi assim que o Corpo de Solidão
se viu coberto por fora,
e por dentro se viu
o Corpo de Solidão abraçado.
Agora sempre que tento inspirar
ela segreda à minha falta de ar,
"Sim, meu amor, é isso mesmo, isso mesmo." (p.40)
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Gravidade

Nunca tentei ver o teu rosto,
Nem sequer quis conhecer
Os pormenores de um lugar inferior
Para onde teria de ir.
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Porém o amor é forte como a gravidade,
E toda a gente tem de cair.
Ao início é da macieira,
E depois do muro ocidental.
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Ao início é da macieira,
E depois do muro ocidental.
E depois de ti e depois de mim
E depois de um e de todos. (p.212)
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Metade do Mundo

Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamo-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
vivíamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade. (p. 226)
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A inundação
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A inundação está a acumular-se
Em breve mover-se-á
Sobre todos os vales
Contra todos os telhados
O corpo afogar-se-á
E a alma libertar-se-á
Anoto tudo isto
Mas não tenho prova alguma  (p.229)

sábado, 4 de setembro de 2010

Palavras, a terra humilde de Ruy Duarte de Carvalho

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«A tarde cai na concha devoluta do meu peito /exausto me devolvo à pedra/e ao coração de um animal cansado», escreveu Ruy Duarte de Carvalho em versos dum poema contido em Lavra - poesia reunida 1970/2000, título indispensável a todos nós que ressurgiu nas livrarias depois da morte do autor, no passado dia 2 de Agosto (Ver Aqui Ruy Duarte de Carvalho por ele próprio).

Um grande homem que nos deixa um legado magistral em língua portuguesa, uma poesia de humildade, pura filigrana vocabular, com a palavra depurada até à sua essência cristalina, com o «chapinhar das frases» que narram brumas, «dias claros» e explicam o infinito. Uma poesia lúcida, daquela lucidez que nos acorda para o assombro. Uma poesia líquida, daquela liquidez que escorre ágil pelos corredores mais esconsos do ser para os inundar e fecundar. Ao lermos a obra de Ruy Duarte de Carvalho fazemos uma viagem pela viagem que ele fez: uma viagem ao silêncio da terra, das paisagens, das grutas, dos bichos, das «mulheres sentadas, das tarefas autónomas que os seus gestos tecem», aos rumores do espírito e à comoção.

«Não poderia traduzir palavras. Optei assim por traduzir a forma e descobrir palavras que acrescentadas são palavras novas», diz Ruy Duarte de Carvalho sobre o gesto que é o texto, lugar de respiração com compassos nomeados assim:

«Partir de uma palavra. Partir numa palavra. Confirmações possíveis. Fidelidade a quê? Texto, lugar do encontro. O pensamento, o tempo, a emoção, o som. Regra primeira – humildade.»

Extractos de poemas:

Eu tenho os dias claros
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Eu tenho os dias claros
de sucessivas luas de Setembro
e a noite que me impõe sinalizar
as direcções cruzadas das margens.
(…)

Entendes companheiro?
Eu estou aqui
a procurar não ir além da bárbara carícia
de um olhar sem tacto

e que nem uma lágrima machuque
a capa muito fina da lembrança
que tenho para dar-te. (p. 34)
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A gravação do rosto

(...)
O zinco dos telhados cobriu-me solidões
e esperanças que tu sabes.
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Esperei aqui por ti
bordei-te flores nos canteiros do céu
abri-te valas, semeei-te milhos
pari colheitas de searas vãs
abri os dedos, semeei calhaus.
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Espremi a terra e fiz-lhe água nascente
Povoei prados de criaturas doces
Ergui torres, girassóis gigantes
Dei vida e morte, vi nascer e morrer.
..
Aqui reinei, julguei, plantei videiras
caminhos, grutas de vestígios;
colhi olhares de animais bravios
deixei aos dedos aladas liberdades.
(…)
Aqui me dei, aqui me fiz,
desfiz, refiz amores.
Senti escorrer pelo corpo o pus das mais antigas chagas.
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Aqui me embebedei e vomitei o espanto.
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Aqui contei os passos
de uma distância que me não contém.
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Daqui abalo hoje, parido para o nada
apalpo a água
afago um bicho
ordeno qualquer coisa
e vou. (p.p 36 e 38)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Poesia reunida de José Tolentino Mendonça

Está nas livrarias a 2ª edição aumentada e encadernada de A Noite Abre Meus Olhos [Poesia Reunida], de José Tolentino Mendonça, com a chancela da Assírio&Alvim. A antologia contém oito livros do autor, desde Os dias Contados (1990), com o qual se inaugurou na poesia, até a O viajante sem sono, editado no final do ano passado, também pela Assírio. É um livro de pequenas dimensões, capa dura e de grande beleza, na linha doutros que a editora tem feito, e chega na altura em que o autor lança o pequeno livro de prosas O Hipopótamo de Deus e outros textos.
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Um grande ano, pois, para José Tolentino Mendonça, padre, teólogo e poeta, que tem talhado uma poesia arrojada, inquiridora, nocturna, melancólica, pejada de vozes, plena de tensões a darem conta dos labirintos e dramas do homem actual. Uma missão fragosa da palavra - em poemas, muitos deles, muito condensados -, consciente da sua vulnerabilidade, lançada numa espécie de travessia ou peregrinação, com visão de descampados, caminhos de poeira, de fogo e de neve, túneis, muros, sempre à procura de novas possibilidades.
José Tolentino Mendonça é um nome da actual poesia portuguesa ao qual se deve dar a maior atenção.
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Dois poemas:

A estrada branca
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Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto


folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
Podia morrer por uma só destas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate. (p.177)

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Travessia


Os nossos dedos são cândidos
com brilhos impressos
e um tempo absorvido dos dois lados
Nos sinos, nos guizos, nas harpas
procuramos sem nenhuma restrição
o fogo e o gelo
a iluminação de um ramo dourado

Há um instante em que as nossas vozes
se fundem e destacam
reluzentes sobre a vida perpétua
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Atravessamos a noite com uma vontade irreprimível de cantar (p.240)

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