domingo, 28 de novembro de 2010

Novo livro de poesia de Ondjaki

Dois livros num só: Acto Sanguíneo e Dentro de mim faz Sul: o iniciático – escritas do fim da adolescência, editado há dez anos – e o mais recente livro de poesia de Ondjaki. É uma «celebração», diz-nos o escritor angolano em nota introdutória, desse «mistério chamado poesia». São pedaços da existência, fragmentos de interioridade desenhados em palavras: o «ritmo do sangue», o afecto do chão, o canto das estrelas da infância, rituais de encantamento, cicios de perdas, saudades, ecos longínquos que a memória foi transfigurando também ao longo de dez anos.

«dez anos antes ou depois, há frases que nos vão resumindo – cicatrizam-se em nós (porque o mundo /assim como sou /não me basta). Pensei também em dizer que, algures, entre estes dois livros, seguem longas linhas de uma sincera confissão. Mas depois vi que isso seria uma redundância humana.», diz Ondjaki, no presente livro.
Com várias obras para crianças, contos, romances e um texto dramático, as razões da poesia (recordo que Ondjaki  publicou também há prendisajens com o xão, em  2002, e, no ano passado,  Materiais Para Confecção De Um Espanador De Tristezaver texto meu sobre este último título) poderão encontrar-se logo em Acto Sanguíneo : «regresso  porque me dói /a parte escondida da perna  //e peço, com a mão mais direita /para escrever em ti .//regresso  porque /acima de tudo /me quero experimentar.//a mim: sanguíneo. //o actor sanguíneo.» (p.125).

Poemas:
(dentro de mim faz sul)

que língua falam os pássaros

de madrugada
que não a do amor?

escuto a madrugada
- lento manancial de céus.

os pássaros
São mais sabedores. (p.17)

***
chove.
o mundo húmido, poético
ganha outra densidade
- longe do medo.

gosto de observar a chuva

a paz
nas suas vestes

a chuva é plena de instantes intocáveis

nós somos
simplesmente humanos. (p.49)
***
(acto sanguíneo)

há uma valsa lenta neste
baixinho barulhar.
um vermelho odor, qualquer coisa de baço
no olhar.
seios brancos, um soutien escondido
um par de óculos
uma doce morosidade.

há algo de erótico na casa da idade

um suspiro estalando no ar
ou uma valsa quente
no repouso de um lar. (p.104)


ver AQUI textos meus sobre obras de Ondjaki

domingo, 14 de novembro de 2010

Blade Runner, a obra de Ridley Scott

É uma experiência e peras viver com medo, não é? É o que significa ser escravo. - Blade Runner

Esta semana, no ciclo de Film noir. Como sempre, a ficha elaborada por José Xavier Ezequiel.



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A épica de Gonçalo M. Tavares

Está nas livrarias Uma Viagem à India, o novíssimo romance de Gonçalo M. Tavares, com promessa de futuros brados.
É uma edição esmerada, de capa dura, branca, com sobrecapa encarnada destacando-se um símbolo gráfico: uma linha recta, vertical, que parte de um ponto, um centro, ou se dirige para ele, como a linha da vida humana do nascimento para a tomada do mundo ou do nascimento em direcção à morte. No interior, a viagem em 10 cantos, eco de Os Lusíadas, cada canto com pequenos textos numerados e dispostos nas páginas como se fossem estâncias; nas últimas páginas, Melancolia contemporânea (um itinerário) dá-nos, graficamente, caminhos daquela linha recta numa espécie de cartografia da existência. «O dispositivo é o de um poema provocantemente épico e anti-épico», escreve Eduardo Lourenço, no Prefácio.
.
Bloom é o herói e anti-herói desta singularidade literária, marca iniludível do autor, e é o espelho onde, como é apanágio da escrita de Gonçalo M. Tavares, inquietantemente nos revemos. A ler, de um fôlego. Transcrevo uns extractos com a formatação que se encontra nas páginas:
.
77
.Há uma fenda entre o mais alto
da cabeça do homem e o céu; e nas minas
onde se exploram as riquezas que caíram
é evidente um outro embaraço antigo: a desligação
entre os pés do homem
e o que existe lá em baixo: o centro da terra.
Mesquinha coisa que existe entre o céu e o centro,
eis o homem. (Canto III, p.144)

38
.
O mundo é redondo, mas todos os lados são iguais.
Os homens têm fome e adversários,
e outros têm prestígio e amigos e, nesta divisão rude,
encontrarás semelhanças evidentes
com a velha Europa, a Ásia, as Américas,
África, e com todos os continentes onde existem
seres vivos. A vida é invenção de demónios:
deram-ta: deves defender-te, deves atacar
(percebes, Bloom?). Percebo, responde Bloom com a cabeça. (Canto VII, p.304)

41
.
Ninguém se encosta a si próprio tão
intensamente como quando sofre ou como
quando entra num mercado de uma
das nossas grandes cidades. O comércio
é feito de uma linguagem inesgotável:
sobra de um lado, falta de outro. O consumo,
por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo:
os deuses formaram homens incompletos,
com estômago, frio, vaidade, como queriam outro resultado? (Canto VII, p.305)
.
.
Ver AQUI textos meus sobre obras do autor.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

relâmpago dedicado a Cesariny

Já está disponível o número 26 da revista de poesia relâmpago, que é, nesta edição, dedicado a Mário Cesariny. O número chega no mês em que passam quatro anos da morte de Cesariny - a 26 de Novembro, com 83 anos. «Se se pudesse falar, nem que apenas simbolicamente, de revolução em poesia, Mário Cesariny seria, sem dúvida, um desses símbolos maiores de mudança, à semelhança de Cesário e de Pessoa, dois poetas aos quais, não sem motivo, a sua obra está ligada», escreve Gastão Cruz na nota editorial.

A belíssima edição contém fotografias a preto e branco e a cores de Cesariny, de trabalhos seus e de trabalhos inspirados na sua obra, em imagens que documentam uma época tingida pelo carisma do homem irreverente e polémico, fundador do surrealismo português, poeta considerado e pintor elogiado. «Para mim tudo é pintura», e é a pintura que melhor faz a «denúncia do desespero», disse o poeta-pintor sobre a sua forma de estar no mundo, forma essa que a relâmpago agora recupera e analisa com ensaios realizados por António Carlos Cortez, Fernando Azevedo, Fernando J. B. Martinho e Fernando Cabral Martins. Como Cesariny é, ainda e sempre, surpresa, a relâmpago dá-nos, em imagens, o original Pastor - Evangelho em 1 Prólogo e 3 Quadros.
.
Cesariny tem a sua obra editada pela Assírio&Alvim, e dos inúmeros títulos destaco Uma Grande Razão - os poemas maiores, com 56 poemas, um artigo de José Manuel dos Santos, publicado no jornal O Público, aquando da morte do poeta, e uma entrevista de Maria Bochicchio a Cesariny, publicada no jornal Expresso. É deste livro que transcrevo o poema uma certa quantidade:

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade
.
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
.
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
.
E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar
.
Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro (p.p. 64,65)