sábado, 5 de fevereiro de 2011

"Nome de Guerra", uma ração de combate

Sempre no destaque dos dias está Nome de Guerra de mestre Almada Negreiros. Mais uma prova da sua natureza inesgotável está o gesto da Fundação José Saramago que tem a decorrer o Prémio de Fotografia “Retratar um Livro” (ver no link), uma iniciativa apoiada pela Assírio&Alvim, editora deste e doutros títulos de Almada.

Nas suas páginas encontramos uma ração de combate ao marasmo, à vida insonsa à apatia que nos engole. O seu estandarte é a rebeldia, a arma é a acutilância vocabular, a originalidade e um humor delicioso compõem a estratégia. Haja um Nome assim que nos coaja a gritar «Basta, pum basta!».

A efervescência narrativa expande-se por sessenta e quadro capítulos curtos, que variam entre meia e quatro páginas, num total de 156 páginas. Nome de Guerra foi escrito em 1925, e os seus capítulos foram editados separadamente em várias publicações. Em 1938 é feita a primeira edição do romance, na Colecção de Autores Modernos Portugueses, pelas Edições Europa. João Gaspar Simões, que organizou e dirigiu a edição, escrevia no prefácio que o livro mantinha a actualidade do tempo em que foi escrito. Dizemos o mesmo, hoje. Em 1956, a Ática lança a 2ª edição com o subtítulo Judite.

O campo onde se trava este combate é a vida, ou o seu jogo de verdade e mentira, realidade e ilusão. Antunes é o protagonista «com um desequilíbrio entre a imaginação e a realidade», que «tentava agarrar a vida com as mãos, mas ou não tinha mãos para isso ou havia outras mãos metidas no assunto». Por ele somos levados para o palco da existência individual e comunicação com os outros: «a comunicação entre os humanos faz-se pela admiração(…) não há melhor compensação para a nossa vida do que a admiração dos outros(…) mas também não há pior momento humano do que aquele em que nos admiram sem acertar no nosso exacto valor(…); a pessoa verdadeira prefere inimigos autênticos a admiradores sem pontaria».

A Antunes aparece «uma Judite que não se chama assim» com um passado de equívocos e um presente sombrio. Ela desafia-nos à reflexão sobre «ser anónimo e proceder como anónimo» e se «há necessidade da mentira para defender a verdade». Judite e Antunes entram na intimidade um do outro «como ladrões que não sabem exactamente o que vão roubar», e as «suas intimidades são devassadas um pelo outro». Vão-se movendo no jogo inusitado e perverso da vida, de encontros e separações, pois «É sempre assim, temos sempre de perder o nosso tempo em desfazer o bem que os outros fizeram por nós.». Vale que «Os olhos da nossa memória vêem melhor que os nossos» e os defeitos da Judite começam a ser notados por Antunes que assim constata estar a "paixão" «a passar-lhe ou então era ele que estava já a ajudar-se para lhe passar a Judite».

A coloquialidade da escrita é tal, que as palavras tornam-se-nos audíveis, com as inflexões da ironia, do burlesco, da consideração obviamente óbvia. E não é raro respondermos a esta conversa bem montada, e rirmo-nos com ela. As questões levantadas, directa ou indirectamente, pelos títulos dos capítulos, e a cada passo da leitura, são um desafio sobremaneira apelativo:

«Cada um vai atrás da sua ideia, ou é a ideia que vai atrás de cada um?»; «Os lugares fazem mudar as pessoas ou o ar é o mesmo por toda a parte?»; «Quanto mais se sabe mais vai ficando por saber»; «quando se passa de um lugar para outro, levamos em geral o primeiro lugar connosco»; «os palermas que não percebem nada da vida são piores que os malandros»…

O pensamento humano quer exemplos pessoais de pensamento, «o trampolim do salto mortal» pois só ele tem o «poder de restituir a alma aos apavorados». Este livro, como um solavanco, acorda-nos para verdades que somos. São páginas adestradas contra a pequenez do quotidiano, contra a cobardia de não nos vermos, que terminam com uma moralidade: «Não te metas na vida alheia se não queres ficar lá». Indispensável ler ou reler.

José de Almada Negreiros, Nome De Guerra, Assirio & Alvim, 2001

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O Ultramar no poema de Nuno Dempster



Quando se assinalam 50 anos do início da guerra do Ultramar, Nuno Dempster lança o poema longo K3, título que é o nome do aquartelamento na Guiné, onde o autor esteve como mobilizado entre 1968 e 1970 (ver na página de Nuno Dempster, AQUI).

Para já, garanto: são 63 páginas com a marca da escrita inconfundível do autor, que se lêem  de um fôlego a pedir a releitura para o prazer demorado no texto. K3 sucede ao também poema longo Londres, editado no ano passado e, novamente, com a chancela das edições &etc. (Ver Aqui texto meu sobre o Londres)



Extracto do K3:

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«[...]
O Sol clareia a falta de sentido
do rumo que levamos,
daí que eu não chegasse a ver no mar
sinal de deuses,
dos deuses que se lê terem andado ali,
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só peixes-voadores,
alheios ao clamor dos afogados,
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os deuses, se existissem, lembrariam
não haver quem alcance
quantos náufragos jazem sob as águas,
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e nós
não queremos contá-los,
medir a maldição em estatísticas
do pensamento.
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Que não venham à tona,
que se deixem estar no fundo do oceano,
os ossos branqueados pelo sal:
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os esqueletos tendem
a ser esquecidos,
a ser uma abstracção marítima,
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a vida bastaria para os ignorar,
se o estrondo, uma nuvem, a vista cega,
trinta serpentes de aço a cuspir veneno
em sucessivas lâminas de fogo
não fossem evidências de naufrágio. [...]  p.p.12,13

"Verso e Prosa", Mário de Sá-Carneiro

(texto editado no sítio da Orgia Literária em 31.01.2011)

«Sá-Carneiro não teve biografia: teve só génio. O que disse foi o que viveu», escreveu Fernando Pessoa, em 1930, numa carta a Gaspar Simões. Fundador, com Pessoa, do Modernismo português, Mário de Sá-Carneiro escava-se em ânsia em busca do Eu, o Outro, contracena com a própria sombra que o revela, autoflagela-se, autocontempla-se e afunda-se no abismo que perscruta, celebra as vanguardas e respectivos niilismos, cria um edifício de identidade entre a vida e a obra literária ímpar na Literatura Portuguesa.

Mário de Sá-Carneiro - Verso e Prosa chega-nos agora pela mão da Assírio & Alvim. É uma bela edição de capa dura e 669 páginas com «um conjunto coerente de textos que integra o que de mais marcante» o autor escreveu, lê-se na apresentação de Fernando Cabral Martins, responsável pela Edição. Na escolha de textos exclui-se a juvenília poética, as peças de teatro e cartas, cuja importância se integrará noutras ordens de razões, refere-se. Além de «poemas e textos soltos, publicados dispersamente ou enviados em cartas a Fernando Pessoa», em Poesia encontramos os livros Dispersão e Indícios de Oiro, e, em Narrativa, as novelas Princípio, A Confissão de Lúcio e Céu de Fogo.

Influenciado pelas temáticas de Baudelaire, pela investigação psicológica de Edgar Allan Poe, pela embriaguez da palavra nova de Mallarmé e pelo símbolo de Pessanha, entre outros, Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) de todos se impregna, molda e lapida com os ismos das vanguardas, como quem busca o diálogo certo e urgente com a sua alma, revelando, outrossim, a inquietação de uma geração perdida no labirinto do tempo vário, acelerado, ruidoso e ruinoso. Debatendo-se na estranheza de um mundo onde sente não pertencer, o sujeito poético de Sá-Carneiro procura-se no seu interior, revolve, minucioso, a alma – esse «tumor triste» e «gato estranho e seráfico», nas assunções de Baudelaire, esse empecilho e fardo «Que não pesa mas que maça: / O zumbido dum moscardo, / Ou comichão que não passa», segundo o próprio Sá-Carneiro –, «brade a espada» e, narcísico, nimba-se de encanto e cria: «O meu destino é outro – é alto e é raro»; «sou luz harmoniosa / E chama genial que tudo ousa».
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A procura do Outro, o seu duplo, nos subterrâneos da alma fá-lo pressentir «um grande intervalo»: «Eu não sou eu nem sou o outro», diz e lança-se, delirante, num «inter-sonho» onde tacteia e resvala: «Quero reunir-me, e todo me dissipo – / Luto, estrebucho… Em vão! Silvo para além…». Estava encontrada a bússola desta poesia: o desdobramento do sujeito na demanda incessante do sentimento e das sensações. Se para Pessanha a dor, «esta falta d’harmonia», é luz sem a qual «o coração é quase nada», porquanto a ausência da dor é a morte, também Mário de Sá-Carneiro arranca a sua obra à dor num processo de desvendamento interior que lhe desintegra progressivamente a personalidade: «Que droga foi a que me inoculei? / Ópio d’inferno em vez de paraíso?... / Que sortilégio a mim próprio lancei? / Como é que em dor genial eu me eterizo?» (p. 20). Embora não conseguindo atingir a despersonalização de Pessoa – o distanciar-se do Outro –, Sá-Carneiro foi um sensacionista de excelência, essa arte que, pela ampliação, procura buscar no objecto uma «qualquer espécie de além-ele», segundo Pessoa, e a sua visão interseccionista concorreu para a teatralidade que imprimiu nas suas personagens: «Tudo me é conduzido no espaço / Por inúmeras intersecções de planos / Múltiplos, livres, resvalantes. // E lá, no grande Espelho de fantasmas / Que ondula e se entregolfa todo o meu passado, / Se desmorona o meu presente, / E o meu futuro é já poeira..» (p. 42).

O desdobramento e o desmoronamento do Eu revelam, ainda, a astenia – «falta-me egoísmo para ascender ao céu, / falta-me unção p’ra me afundar no lodo» – que é também a da sua geração, o que o faz metaforizar a vida – «E ei-la, a mona, lá está, / Estendida, a perna traçada» – e a alma – «o raio já bebe vinho, / Coisa que nunca fazia». Sem saber fixar-se, e «castrado d’alma», afunda-se na dor: «Serei um emigrado doutro mundo / Que nem na minha dor posso encontrar-me?...». O templo que criou revelava um deserto, um grito surdo como o pintado por Munch, um sudário espesso do qual não se consegue desprender, tecido com a inconstância da alma e a consciência disso. Atente-se no excerto e nas maiúsculas enfáticas «Arco» – a curva obsessiva – e «Ânsia», motores da tragédia pessoal:

Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que há-de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular…
Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos…
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de cores…
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo…
Já não é o meu rastro o rastro d’oiro que ainda sigo…
Resvalo pontes de gelatina e bolores…
– Hoje a luz para mim é sempre meia-luz…
….. (Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado…) (pp. 64-65)


Numa atmosfera de ressonância simbolista (o “mistério”, o “sonho”, o “vago”), levada à desmesura, o sujeito poético percorre-se «em salões sem janelas nem portas, / Longas salas de trono a espessas densidades», «grandes escadarias», destroços, corrimãos partidos, lustres de cristal, velas de ouro, cetins rasgados, tectos e frescos enegrecidos, num cenário de degradação sucessiva, amplificado pelos espelhos deformantes em que se vê e desfruta a imagem grotesca e trágica do seu Outro, que ridiculariza com ironia angustiada, como se constata no poema intitulado exactamente «Aquele outro» (p. 121), onde se autocaracteriza como «o dúbio mascarado – o mentiroso», «O sem nervos nem Ânsia – o papa-açorda», «O raimoso, o corrido, o desleal – / O balofo arrotando Império astral: / O mago sem condão – o Esfinge gorda…». A obsessão do sujeito destruir o corpo que lhe polui a alma é recorrente na escrita de Sá-Carneiro; é o poder da «Grande Sombra», o espectro da dor, a loucura e a morte que percorrem toda a obra de Sá-Carneiro, num misto de angústia e curiosidade da morte, numa sondagem que se espraia à recolha que faz de textos de suicidas seus contemporâneos, amigos e conhecidos, como é o caso do texto «A profecia», sobre o suicídio de António Maldonado, poeta do Crepúsculo, com excertos do seu diário que indiciam as razões do suicídio, e onde se lê: «Suicidou-se ontem o meu alfaiate. Esse não teve medo. Ele próprio foi ao seu encontro.» (p. 214). «Não me pude vencer, mas posso-me esmagar», «Ai que saudades da morte…», «Quero dormir… ancorar…», escreve Mário de Sá-Carneiro como quem sente o mal a fitá-lo com o seu olhar de corvo, e que o faz ficcionar epílogos como este:

Do alto da sua torre, do alto da cúpula de aço refulgente, debruçava-se para ver o seu triunfo. E via a Glória. Mas de súbito houvera um bater de asas negras. Ao mesmo tempo, as nuvens áureas, turbilhonando, cegaram-lhe a vista: se olhava para a terra, o solitário do azul não via a terra; se olhava para o céu, não via o céu… Debruçou-se mais. Batiam sempre as grandes asas negras. Louco de pavor, quis fugir… Precipitou-se… foi-se abismando no espaço… Em vez da luz, as trevas impenetráveis; em vez das alturas, a profundidade. Mas a profundidade e as trevas aliviam os corpos fatigados. O artista sublime descansava. (p. 292)

Edgar Allan Poe escreveu, no «Soneto-Silêncio», que o silêncio tem corpo, que «por si só não pode fazer mal», porém se lançado «o Fado inexorável, / De encontro à sua sombra (elfo inefável / Que assola os ermos onde outrem jamais / Pisou)», que Deus guarde «então a alma!»*. Fingindo a dor que deveras sentia, Mário de Sá-Carneiro revelou a sua Clepsidra, o relógio que marcava, a sua proximidade da morte.

«uma poção de estricnina / deu-lhe a moleza e foi dormir // preferiu umas dores no lado esquerdo da alma / uns disparates com as pernas na hora apaziguadora / herói à sua maneira recusou-se / a beber o pátrio mijo / deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto, / desembarcou como tinha embarcado // sem Jeito Para o Negócio», escreveu Mário Cesariny num poema sobre Mário de Sá-Carneiro**.

«A vida é um lugar comum. Eu soube evitar esse lugar comum. Eis tudo», escreve Mário de Sá-Carneiro através de uma personagem de «O Homem dos Sonhos» e nela reconhecemo-lo, «o príncipe sonâmbulo do sul», «o mítico rajá de Índias de tule», o «Rei exilado, Vagabundo dum sonho de sereia», a vertigem plasmada em Língua Portuguesa.

Notas:

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Edgar Allan Poe, Obra Poética Completa, p.143, tradução de Margarida Vale de Gato, Tinta-da-China, 2009
** Cesariny Uma Grande Razão – os poemas maiores, p.34, Assírio & Alvim, 2007
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© Teresa Sá Couto