domingo, 29 de maio de 2011

Albano Martins em italiano


Textos meus sobre Albano Martins, aqui.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Diálogo Ibérico de José Bento

«É um trabalho de artífice, o meu. Sou tecelão /de sons que elaboro e harmonizo, entalhador /a quem a matéria agride até ser afeiçoada./ Para quem trabalho? Quem me escuta como sorvo /o que me é dado para eu criar e transmitir?», escreve José Bento no seu novo livro Sítios, em versos que ressumam o labor de uma vida no laboratório da poesia.
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Quase a completar 80 anos, o poeta e tradutor de poetas volta ao destaque nas livrarias com três títulos de uma assentada: além de Sítios, da sua poesia, é o responsável pela selecção, tradução, prólogo crítico e notas das antologias poéticas de Luis de Góngora (1561-1627) e Lope de Vega (1562-1635), todos com a chancela da Assírio&Alvim. Se estes dois poetas do Siglo de Oro já constavam, com alguns poemas, na Antologia da Poesia Espanhola, segundo volume, também com selecção e tradução de José Bento, editada pela Assírio&Alvim, em 1996, as presentes Antologias individuais são as primeiras em Portugal.  

Reconhecido pela exigência, rigor e erudição, José Bento tem dedicado a vida à tradução para língua portuguesa de poetas de língua castelhana (entre outros, Cervantes, Quevedo, García Lorca, Neruda, Unamuno, Juan Ramón Jiménez, Jorge Luís Borges, maria Zambrano, Octávio Paz), contribuindo para o inestimável diálogo entre as literaturas ibéricas, que, assim, sai do reduto da Academia e abre-se ao público.

Entre várias distinções, José Bento recebeu em 2006 o 1º Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura.

Extracto:
[…]

Para ser voz
tinha que assim moldar-se tal silêncio?,
ter o fogo expectante no sílex,
o rigor do metal
que nem perante o sangue se retrai e vacila
até desvendar a última verdade,
a que se toque talvez ao quebrar ou exumar
a constância dos ossos?

Quando me será dado responder?
Distante desse curso obscuro,
mal vislumbro o que para mim foi nele escrito.

Desde então persigo o seu sentido.
Hoje prossigo, eis-me a prosseguir.

Aqui, errante, ­ – escrevo, erro.
Leio a noite: identifico ainda aquela noite.
Adianto uma palavra, mais um passo:
uma sílaba, uma pulsação
queimam ao vibrar e entregar-se.

Procuro a clave da ferida em mim acesa
naquele instante que dividiu meu tempo.
No relâmpago que esse instante é para sempre,
descerrou-se para eu o conhecer
o rosto fascinado
da morte já erguida. (Sítios, p.p. 181,182)

terça-feira, 17 de maio de 2011

«O Trompete de Miles Davis», Francisco Duarte Azevedo

(Texto publicado no sítio da Orgia Literária, dia 16.05.2011)

«O fado também pode ser tocado num saxofone»: esta é a chave de O Trompete de Miles Davis, romance de estreia de Francisco Duarte Azevedo, que desenha o policial, mas é a observação social que o enche gizada num roteiro da emigração portuguesa na América. Dúctil, a escrita mostra que é voo de memórias, voz de sonhos traídos e depoimento do virtuosismo com que se improvisam os dias.

A narrativa é controlada pela voz de um narrador participante, um detective privado em Newark, o «Sherlock do bairro» que «encaixava perfeitinho naquelas rotinas», rotinas que são abaladas pelo desaparecimento do trompete verde de Miles Davis da vitrina da Dana Library, durante uma palestra de um escritor português. A estratégia narrativa da primeira pessoa possibilita exploraram-se eficazmente mundos interiores anquilosados, estabelecer cumplicidade com o leitor devido à característica de depoimento e demonstrar uma consciência actuante, o que dá carácter intervencionista à obra, que pretende problematizar a condição dos emigrantes. Tudo tarefas que o autor cumpre com apuro.

Conta-se a história dum «tipo banal», um emigrante português – e, por ele, do grupo social onde se insere –, que seguiu o sonho de ser actor em Hollywood, mas lavou pratos, foi professor de português num colégio e acabou a sufocar num escritório de vidraças fechadas, com o sonho emparedado no subúrbio que partilha com grupos étnicos, sem conviver, «muros invisíveis» entre raças, culturas e tradições, «movendo-se como as lamas de um vulcão».

Delineada a personagem e estabelecida a intenção, a narrativa, inteligente, lança mão à ironia, ao humor e tece uma teia subtil – que, por isto, não se compadece com leituras descuidadas – com elementos narrativos de transgressão a uma vida escandida na luta pela sobrevivência, que configuram o desejo de liberdade ou representam as asas de sonhos sublimados. Assim surgem, ao longo das 301 páginas, referências a pássaros que cruzam os céus, pássaros que se metamorfoseiam «em harmonias e desarmonias de sons de um trompete», numa clara contaminação das técnicas do jazz na narrativa, a metamorfose da improvisação que servia a necessidade humana, básica, de exteriorização de emoções contidas; o detective cria «hologramas de Miles Davis por toda a parte», sons que o fazem recordar a «batida tranquila de vagas na vazante, a maré rodopiando, retrocedendo e voltando a rodopiar» e onde vê uma «imperturbável e explosiva mistura de cores»; o protagonista olha todos os dias para um quadro de Nova Iorque, de um pintor de rua, onde «podia inventar e desejar fosse o que fosse naquela cidade», «compensar a ausência» e a nostalgia que ela lhe «causava ali tão perto»; finalmente, a poltrona do escritório, onde o detective se refugia, desempenha um papel essencial no desenho psicológico do protagonista e na configuração do desejo, secreto, de liberdade: «deixar apenas que a memória aflorasse sem se intrometer demasiado no âmago das coisas. Queria tornar-me leve» (p. 297).

Tudo na escrita é preciso, como a precisão do relógio de pulso – «um velho Baumatic» – que o detective usa, também símbolo da memória, gesto assumido directamente no texto por Francisco Azevedo, diplomata de carreira: «Há sempre uns tipos que teimam em escrever as suas memórias como se o mundo não passasse sem eles: os detectives, os políticos e os diplomatas.» (p. 296)

Teixeira de Pascoaes escreveu que «a saudade retoca certas imagens da memória e acende uma auréola divina em volta delas». Enformando este projecto, a narrativa divaga por espaços feitos itinerários da memória, ilumina-os com sinestesias, descreve-os com perfeição cinematográfica. Assim surgem: o «bate papo adocicado» na claridade e penumbra do Meal’s Place, com as suas janelas de cortinas vermelhas, ruído de talheres e tilintar de copos; um café expresso duplo no Starbucks, «ténue compensação» com saudades do café da Brasileira do Chiado ou do Nicola; a doçaria portuguesa do café La Provence, para onde caminhava nos fins de tarde «com a veneração de um crente», onde se sentia «barco em porto seguro» e «aos sábados fazia o gosto ao dedo com galão escuro e torradas com manteiga desfazendo-se salgadas sobre as papilas da língua», trazendo-lhe «na trinca o aroma de Lisboa»; o percurso entre La Provence e a Penn Station, «esse caminho mágico» que é a Ferry Street ou a Avenida de Portugal», de negócios dos portugueses, onde abundavam «criaturas mitológicas, descidas das serras do Marão ou da Estrela, de suas faldas, vales e encostas, largadas de povoas e gândaras costeiras ao mar oceano como Aveiro, Ílhavo, Murtosa e outras baixadas em torno da ria.» (p.91)

Francisco Azevedo mostra-nos que a escrita é uma casa: «até um pássaro busca o seu ninho», lê-se neste romance que convida o leitor a ser detective nas páginas para prazer da sua leitura. Esperemos que a casa se amplie, pois este foi um início de gigante.

O Trompete de Miles Davis, Francisco Duarte Azevedo; Planeta, 2011

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Manuel António Pina

Manuel António Pina é o Prémio Camões 2011, e eis uma alegria que nos espevita em tempos de cansaço e abulia.
«Um escritor altamente qualificado nos diversos campos em que actua, em especial em suas poesias, para adultos e crianças, que possuem alto grau de inventividade e originalidade», justificou o Júri do Prémio, o que há muito sabemos.

Estão de parabéns, o autor, a Assírio&Alvim,a Literatura Portuguesa e, por isso, nós todos. Mas há mais: a editora anunciou que vai lançar na Feira do Livro do Porto a antologia poética POESIA, SAUDADE DA PROSA - UMA ANTOLOGIA PESSOAL (imagem à esquerda), com selecção de poemas feita pelo próprio autor, e, daqui a alguns meses, um novo livro de poesia, o primeiro nos últimos oito anos, refere a editora. E nós esperamos.






Um poema:

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
Poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –

Poesia Reunida, p.38, Assírio&Alvim, 2011