quarta-feira, 13 de julho de 2011

Tagore e Whitman

Poesia, de Rabindranath Tagore e Canto de Mim Mesmo, de Walt Whitman são duas novidades imperdíveis da Assírio&Alvim. Na tradução de ambos os títulos está a mestria do poeta José Agostinho Baptista.

Tagore (1861-1941) desenvolveu uma lírica de contemplação, misticismo e questionamento do Homem. Se é atribuída ao escritor indiano a reformulação da literatura bengali e, através dela, uma ponte entre a cultura oriental e ocidental, o que certamente concorreu para a atribuição do Nobel da Literatura em 1913, Walt Whitman (1819-1892) é tido como o bardo americano; amplo, intenso, eufórico, esperançoso, provocatório e agente de modernidade, o autor de Leaves of Grass foi a senha do heterónimo pessoano Álvaro de Campos, que o reinventou e a quem dedicou a Saudação a Walt Whitman. Canto de mim mesmo é, assim, um texto fundamental para se definir o autor e se entender porque Fernando Pessoa o teve como modelo teórico e crítico, numa época sociopolítica ruidosa e ruinosa.
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Textos:

Convalescença – 14


Todos os dias de manhã cedo este cão fiel
Senta-se silenciosamente ao lado da minha cadeira
Até eu reparar na sua presença
Ao tocá-lo com a minha mão.
No momento em que recebe este pequeno reconhecimento,
Ondas de felicidade percorrem o seu corpo.
No inarticulado mundo animal
Apenas esta criatura
Compreendeu o bem e o mal e viu
O homem completo,
Aquele a quem
Talvez a vida deu alegremente
Esse objecto de um amor livre
Cuja consciência assinala o caminho
Para o coração da consciência infinita.
Quando vejo esse coração emudecido
Que revela a sua própria humildade
Através de uma total auto-rendição,
Sinto-me incapaz de descobrir o valor
Que a sua simples percepção encontrou na natureza do homem.
A profunda ansiedade do seu olhar mudo
Apercebe-se de algo que ele não pode explicar:
Ele remete-me para o verdadeiro significado do homem no universo.

(Rabindranath Tagore, p.124)

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XII

O jovem carniceiro despe as roupas de trabalho, ou afia a faca na banca do mercado,
Demoro-me a desfrutar as suas réplicas, os passos, as pausas.

Com o peito tisnado e peludo os ferreiros rodeiam a bigorna,
Cada um segurando o malho, todos exaustos, o calor é tanto por ali.

Do umbral cheio de cinza sigo os seus movimentos,
A pequena torção das cinturas acompanha os braços musculosos,
Por cima do ombro brandem os martelos, por cima do ombro tão lentos, por cima do ombro tão seguros,
Não têm pressa, golpeiam no seu lugar.


(Walt Whitman, p.33)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama

Recentemente, pedi atenção para o nome de Paulo Assim. Não por causa dos prémios que o autor tem vindo a receber, mas pela natureza da sua poesia limpa, com depuração e segurança raras, impressa no pequeno grande livro Celulose,  livro que deu ao autor o Prémio Nacional de Poesia de Vila de Fânzeres 2010.
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Agora, Paulo Assim recebe o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2011, com o livro Retrato a Sépia, sobre o qual diz Pedro Tamen:
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«Li-o com toda a atenção e constituiu para mim uma grata surpresa. O autor demonstra um à-vontade no tratamento das palavras e um amor por elas que para mim são indiscutíveis marcas de um poeta a sério. Por outro lado, o livro revela uma unidade temática sem falhas que o torna particularmente aliciante. E acresce (excelente coincidência) que o espírito deste "Retrato a Sépia" não anda longe da natural simplicidade da obra do Poeta a que o prémio presta homenagem.».

Esperando que Retrato a Sépia chegue rapidamente ao mercado, deixo duas estrofes que lhe desvendam o interior, gentilmente cedidas por Paulo Assim:

O ar quente e quieto da tarde
era uma porta.
Vindo de além, o cuco
batia com as nozes dos dedos
nessa invisibilidade que não abria nem fechava
para nos anunciar a dureza do estio.
Trazia-nos as más notícias de África
ou, como nós, roubaria algures mais um ninho,
o cuco, invisível pássaro.

E as amoras tinham
o sabor da aventura.
A língua roxa soletrava
outras palavras, talvez paixão ou mesmo já amor,
e as mãos com riscos de sangue
pedindo que incendiássemos
a tarde das cigarras.



*Ver AQUI texto meu sobre o Celulose