terça-feira, 18 de outubro de 2011

Casa da Cultura José Marmelo e Silva

Há já meia dúzia de anos, num artigo sobre José Marmelo e Silva, rejubilava-me com a notícia do projecto de construção da Casa da Cultura José Marmelo e Silva, na freguesia do Paul, local de nascimento do enorme, inquieto, carismático, polémico, fundamental  e saudoso autor. Hoje, o projecto está finalmente concretizado e a inauguração marcada para o próximo dia 22 de Outubro. A nova casa, com mais de 200m2 e dois andares, compreende a biblioteca com zona de acesso à internet, sala de exposições, gabinete de reuniões e um espaço temático que recria o ambiente de trabalho do escritor que foi também professor e jornalista. É tempo de orgulho, de felicidade e de celebração das letras portuguesas.

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O evento insere-se nas celebrações do centenário de nascimento de José Marmelo e Silva 1911-1991), que se comemora este ano. No mesmo ensejo, foi publicado recentemente o livro O mágico pressentir do artista – entrevistas com José Marmelo e Silva, uma edição de Ernesto Rodrigues, com a chancela do CEJMS (Centro de Estudos José Marmelo e Silva).

O livro, cujo título resgata palavras do próprio José Marmelo e Silva, colige, em 144 páginas, as 21 entrevistas concedidas pelo autor a jornais e revistas entre 1943 e 1987. Trata-se de uma pequena pérola onde se esculpe a  «palavra do autor», «construtivo e desassombradamente moralista, enleado em aperfeiçoar o pormenor», como refere Ernesto Rodrigues, na Introdução; é, sobretudo, um livro imprescindível para a compreensão do homem  cuja obra se antecipou ao seu tempo, que em 1943, disse:

A Vida apresenta-se-me demasiado preciosa (ou demasiado exigente), para que eu possa consumi-la em proveito de certas camadas que pagam as coisas de Arte a um preço inferior ao das bebidas, e somente para excitarem os seus prazeres ou ostentarem as suas vaidades.  (p.p.15-16);

e que, defensor de uma educação humanista, declarou:

Instruir, formar operários, formar técnicos, não basta. Não basta produzir. Os objectivos da educação serão sempre, e acima de tudo, objectivos humanos em todas as dimensões. (p.59)

*Nota: agradeço o livro, aqui referenciado, à generosidade do poeta José Emílio-Nelson, filho de José Marmelo e Silva e seu incansável divulgador.

*página de José Marmelo e Silva, AQUI.

*textos meus sobre o autor, AQUI.

domingo, 9 de outubro de 2011

Joaquim Pessoa: um lugar no Mundo

Foi no dia 07 de Outubro, na repleta Biblioteca Municipal do Barreiro, o Colóquio sobre a obra de Joaquim Pessoa e a Apresentação do livro Ano Comum, com a chancela da Litexa. Na mesa, eu, Joaquim Pessoa, José Jorge Letria, Cristina Paixão e Carlos Mendes (na imagem, da esquerda para a direita). A surpresa abriu os trabalhos: na qualidade de Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria entregou uma placa de prata, galardão de homenagem às mais de três décadas de poesia de Joaquim Pessoa.
Ano Comum tem prefácio de Robert Simon e posfácio meu. É o posfácio que aqui edito. Futuramente, se o considerar pertinente, editarei aqui outros textos sobre a obra de Joaquim Pessoa, que têm vindo a ser (e outros ainda serão) pronunciados em diversas ocasiões, e todos eles complementares.

(fotografia de Dina Barco - clicar na imagem para aumentar)

Joaquim Pessoa: um lugar no Mundo

Perguntaste-me o que é que o crustáceo fia
entre as suas patas de ouro
e eu respondo-vos: O mar é que o sabe.

Pablo Neruda, Canto Geral (1)

Determo-nos em Ano Comum é irmos ao encontro dum projecto de modelação do humano em comprometimento com o mundo, projecto que Joaquim Pessoa urde há quase quarenta anos.
Tendo a escrita como forma de experiência do mundo e atrevimento sobre o mundo, a palavra de Joaquim Pessoa revela a consciência e a necessidade de atentar no real, motivando uma poesia de engendramento antropológico, social e político, num pacto solar e apolíneo com a vida, solidário e fraterno: «convoco a vida para a tua vida. Convoco a tua vida para a minha vida. E convoco as nossas vidas para todas as vidas que soubermos convocar.». É a palavra em busca de uma pátria que contrarie o «quintal cheio de melancolia e solidão» e as ruas da desesperança, sendo o coração a chave – «a grande pátria colectiva» –, pois «só o coração possui uma estratégia do impossível e a memória agradecida de um mendigo».

Marcadamente metapoética, a poesia do autor de O Pássaro no Espelho (livro de 1975) – o pássaro em situação especular, que se observa a si mesmo, a poesia que fala de si mesma e que a imagem invertida no espelho simboliza – acusa ter, em Ano Comum, a técnica e a razão dos pássaros: «o silêncio é para o pássaro como a jangada para o náufrago. Quer dizer sobrevivência. É também por isso que digo ter desenvolvido a técnica dos pássaros.».

No «coração vagabundo do livro» da vida, há que roer um substantivo, mastigá-lo devagar, «como o início de uma estrela» e levá-lo ao encontro do adjectivo para que juntos exprimam as tensões do voo. «Escrevo luz e escrevo limbo e escrevo lâmina», diz o sujeito poético do poema que pode ser «fósforo», «gato», «pedra», «enxame de sílabas», «céu de milénios», «sedução de pétalas», «dor das colinas», «medo do abismo», «faena», «alma do toiro», «sangue», «respiração», «braço», «ombro», «sexo», «dique», «barragem, «igreja», «voo», «instinto», «instante», «tempestade», «flauta», «nave», «cave», «cão, «pão», «chave», «solidão», «liberdade». O poema é, pois, a pulsão que liga o poeta ao mundo.

Também o drama da criação surge prodigamente, como os exemplos da metáfora da lampreia que dá o sangue em sacrifício ou o «osso, essa figura exemplar», assim referido em Peixe Náufrago (livro de 1985); um osso de cuco, fora do cuco, pode «redimensionar o universo», lê-se em Ano Comum; a palavra é o osso que o escritor arranca de si; o cuco marca o tempo; na literatura, essa marca é a memória. Na temporalidade constitutiva que é a memória encastoam-se a nostalgia e o pessimismo originando textos como este:

Havia um sonho. Havia uma
Esperança. Havia. Havia.
Mas o sonho também cansa
E a esperança está vazia.

Havia um sonho e uma esperança.
Pois havia.

Note-se que o pretérito imperfeito do verbo «Havia», no seu aspecto de duração, constata a desilusão, mas nega o fim da acção de sonhar. São perspicácias de uma poesia que denuncia, mas que se recusa a cantar a desistência humana, uma poesia com a consciência de que a dor mundializa o homem, que sabe que «Todos os invernos são um investimento no futuro», que celebra o contrato com a vida e tem na transformação e na mudança a «pequena glória» do poema: «Revogo o arrependimento e as lágrimas, estabeleço uma labareda no seu lugar».

Na transfiguração da ferida irrompe, muitas vezes, a ironia redentora, característica de sempre da escrita de Joaquim Pessoa: «Procurar uma nova terra no oceano, só mesmo em busca de um resort para descanso dos novos heróis do mar desta nação valente, deste nobre povo.».

Morada e mapa de um sentimento, a palavra encontra na temática do corpo um grito libertário. Diz Novalis que «O nosso corpo é uma parte do Mundo – um membro exprime já a autonomia, a analogia com o Todo – o conceito de microcosmo. Com o corpo modifico para mim o meu Mundo» (2). Em Ano Comum, surge-nos o cotovelo como uma jóia, porquanto é «um pé das ideias»: «nele me apoio para olhar dentro de mim»; os dedos são «cegos que procuram o amor, tacteando. Dez pretextos para procurar o sentido de todos os sentidos, rigorosamente, como a geometria do bailarino»; as mãos confundem-se com as palavras – «dou-te as palavras como dou as mãos» – na operacionalização do amor e da fraternidade, no desempenho do sangue com a objectividade «quase insolente» da sua cor a movimentar-se «para dentro da realidade». Declarando-se pertencer ao «signo do afecto» e «enamorado sempre da realidade», na aproximação ao «estar enlevado é uma forma de realidade», de Paul Eluard (3), o sujeito poético tem na sua cidade de sempre a sua cosmologia: «Em Lisboa estão os teus olhos e as minhas mãos. E abraçam-se»; «Falo desta cidade e uma gaivota abre em mim as suas asas, com vontade de partir e de ficar. É a saudade, dizem.». Será uma saudade em busca de uma cumplicidade logo encontrada em Cesário Verde, o cartógrafo solitário, com quem o sujeito poético partilha o amor pelos «ácidos, os gumes e os ângulos agudos.»; será a fome da vida e a necessidade de mapear essa sua condição.


«Viver é ter fome! A vida é fome: fome de alma e de pão! Fome negra!», escreveu Teixeira de Pascoaes (4). Num gesto de reinvenção desta herança, Joaquim Pessoa escreve, em Ano Comum, que a «fome é doce, límpida, comovida, como a cor da água-marinha». Em Poemas de Perfil (livro de 1975), em versos dedicados à classe operária, lê-se que «A fome é uma arma», sintetizada assim em Ano Comum: «Daremos luta.». Viver é, pois, ter «Fome de tudo», sendo este um tudo secreto, como «É secreta a conversa entre o fogo e a lenha», «a voz dos búzios, a saudade das andorinhas», a beleza, o espírito, o medo, a morte, a loucura, o acto de criar.

                                                     
Em Joaquim Pessoa, «tudo é matéria da poesia», porque as palavras dos poetas juntam-se a outras palavras para procurarem um caminho, e porque «o azul tem sempre a cor que nós quisermos.». Todavia, na obra do autor, há aqueloutro Tudo unificador, onde se reúnem todas as outras coisas: o Amor, «sempre o amor, sempre o soluçante líquido da vida», na formulação de Walt Whitman (5), o amor cujo mel «tem o esforço da abelha», e que, ávido, pede para ser construído todos os dias ou dito assim em Ano Comum: «Tenho sede quando te beijo. Quando não te beijo tenho sede.».

No processo de construção do humano há que contar com incursões biográficas nem sempre fáceis de destrinçar do fingimento poético, que revelam a busca e configuração de uma identidade – busca que acarreta necessariamente uma dimensão temporal que acciona os mecanismos da memória – e conferem pendor auto-reflexivo à poesia de Joaquim Pessoa. Se nos deparamos com a questionação da condição do homem em determinadas circunstâncias de tempo e lugar, é, sobretudo, de biografia interior que se trata, aquela que revela sentimentos de conquista, perda e a teimosia dos sonhos.

«Sou apenas um escritor. Um cultivador. Um jardineiro. Um florista. A minha felicidade flutua entre o estrume que deponho na raiz das palavras e o aroma que me excita quando acabo de as colher», diz-nos o eu numa sábia relação com o mundo empírico que o suporta para definir o seu lugar no Mundo, ao mesmo tempo que, aludindo à imortalidade dos escritores, se projecta na eternidade: a sua idade «é a mesma do lobo, do alce, da andorinha», que não conhecem o tempo, não conhecem a morte e por isso são imortais: «E não sei que idade tenho. Talvez sessenta anos. Talvez o tempo do amor. Ou o tempo que falta para salvar o amor.».


(1) Pablo Neruda, Canto Geral, tradução de Albano Martins, Porto, Campo das Letras, 1998, p.530
(2) Fragmentos de Novalis, selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes, Lisboa, Assírio&Alvim, 2000, p.67
(3) Paul Éluard, Últimos Poemas de Amor, tradução de Maria Gabriela Llansol, Lisboa, Relógio D’Água, 2002, p.221
(4) Poesia de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Assírio&Alvim, p.347
(5) Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, selecção e tradução de José Agostinho Baptista, Assírio&Alvim, Lisboa, 2011, p.119


© Teresa Sá Couto