domingo, 23 de dezembro de 2012

Três momentos da poesia europeia por Albano Martins

Está nas livrarias o belíssimo volume Três momentos da poesia europeia (De Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas), com selecção, tradução e notas de Albano Martins, publicado pelas Edições Afrontamento. Recordo que o poeta português e tradutor de poetas recebeu, no passado dia 12 de Dezembro, o Grande Prémio de Tradução Literária 2011, da Associação Portuguesa de Tradutores /Sociedade Portuguesa de Autores, pela tradução da Antologia da Poesia Grega Clássica, também com a chancela da Afrontamento. Noto, ainda, que a tradução do Canto Geral, de Pablo Neruda, publicado pela extinta Campo das Letras, em 1998, deu a Albano Martins, em 1999, o Grande Prémio de Tradução A.P.T. /Pen Clube Português e, pela tradução de sete obras do poeta chileno, o governo do Chile conferiu-lhe, em 2004, a Ordem de Mérito Docente e Cultural Gabriela Mistral, no grau de Grande Oficial.


(na imagem, Albano Martins na sua mesa de trabalho, fotografado por mim em Agosto último)

Na presente antologia, coligem-se dez poetas gregos arcaicos (Arquíloco, Álcman, Mimnermo, Alceu, Safo, Íbico, Anacreonte, Teógnis, Simónides, Píndaro), dez poetas italianos contemporâneos (Umberto Saba, Dino Campana, Vincenzo Cardarelli, Giuseppe Ungaretti, Eugenio Montale, Salvatore Quasimodo, Raffaele Carrieri, Sandro Penna, Cesare Pavese, Antonia Pozzi) e cinco poetas da geração espanhola de 27 (Pedro Salinas, Jorge Guillén, Gerardo Diego, Rafael Alberti, Manuel Altolaguirre). No final do livro, encontramos notas biográficas e bibliográficas de cada um dos poetas.


três poemas:

Não entendo a luta dos ventos. Rola
uma onda daqui, outra dali. E nós,
no meio, somos arrasados
com a escura nau, duramente
sacudidos pelo forte temporal. Já a vasa
cobre o pé do mastro, toda
a vela é rasgada e dela
pendem enormes farrapos. Os cabos
cedem, e o leme...
Firmo os pés nas enxárcias
e apenas isso me mantém são e salvo ...

Alceu, p.17

***
Não sei onde as gaivotas fazem o ninho,
onde encontram a paz.
Sou como elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
Como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.

Vincenzo Cardarelli, p.77

***

Enganou-se a pomba.
Enganava-se.


Ia para norte, foi para sul.
Julgou que o trigo era água.
Enganava-se.

Julgou que o mar era o céu;
a noite, a manhã.
Enganava-se.


Que as estrelas eram o orvalho;
o calor, a neve.
Enganava-se.


Que a tua saia era a tua blusa;
o teu coração, a sua casa.
Enganava-se.



(Ela adormeceu na orla;
Tu, no alto de um ramo).

Rafael Alberti, p.159



 Ver AQUI outras rubricas sobre Albano Martins.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Poesia de Francisco Duarte Azevedo

O livro de poesia As Habitações Interrompidas, de Francisco Duarte Azevedo, foi lançado no dia 27 de Novembro de 2012, no belíssimo Museu da Música, no Alto dos Moinhos, em Lisboa. O livro tem Prefácio meu e a Apresentação Pública esteve a meu cargo. É o texto do Prefácio que aqui vos deixo. Divulgarei oportunamente o texto que serviu de base à sessão do lançamento.
 
 
(na imagem, da esquerda para a direita: Francisco Duarte Azevedo, Teresa Adão - escritora e directora da editora  Edições Esgotadas - ,  Emília Noronha - Presidente da Junta de Freguesia do Alto dos Moinhos - e eu. A fotografia é de Paulo José Coelho, da editora Edições Esgotadas.)
 
 

Uma morada de sal e luz

 
é da palavra errante que
devemos falar, da distância
das coisas ou da cor do mar.

                        João Miguel Fernandes Jorge

 
 Diplomata de carreira, com a condição de errante pelo mundo, Francisco Duarte Azevedo busca na palavra literária uma habitação na habitação interrompida. O pequeno livro de poemas Os Ícones, de 1998, uma edição búlgara com o patrocínio e apoio da Associação dos Luso-Falantes na Bulgária, iniciava a catedral dessa demanda; o seu romance de estreia, O Trompete de Miles Davis, de 2011, talhava excertos de prosa poética fulgurante; neste Habitações Interrompidas, Francisco Duarte Azevedo regressa «à intempestiva forma caótica do silêncio», à água, «às linhas que atam / (como a chuva) / o corpo às algas do mar», ancora-se no sal da deriva e encontra refúgio na luz grande do mar.

«O espírito do pintor deve assemelhar-se a um espelho que adopta a cor dos objectos e se enche de quantas imagens tem diante de si», defende Leonardo da Vinci no Tratado de Pintura. Francisco Duarte Azevedo cruza a estética da poesia com a estética da pintura num canto que urde a existência interior do sujeito que «interpreta o mundo» e «luta contra as sombras/dos fantasmas, por uma habitação/não interrompida». A arte poética de Habitações Interrompidas carrega um trabalho apurado sobre a emoção e a memória, acto de buscar e conhecer, recorrendo a uma voz simbólica que interroga interrogando-se, a um olhar dinâmico que, como janela da alma e espelho do mundo, provoca, recolhe e deposita toda a matéria no corpo do poema, para que a memória sobreviva.

Como com a palavra, um quadro é feito de «pequenos nadas», pinta-se «com a argamassa /dos detalhes que preenchem /a vida», um quadro «Intervém», nele está o grito de liberdade dos emparedados, «os muros das habitações/transitórias», «os séculos da memória /e as histórias das aldeias /dizimadas», um quadro «denuncia o tempo /traz a memória nas mãos», «um quadro é ternura /banhada pelas manhãs /de luz», «É espaço rendido à leitura». Sobretudo, e sendo espaço de liberdade e de busca, «Um quadro é espaço vedado à morte» ou, dito ainda assim: «Procuro o meu ninho/ no aconchego/da brancura de uma tela.// […] uma simples cor pousada /como a pegada de ave /no reflexo das águas, /rasgam os sulcos por onde /seguirás na direcção do mar // Eis a claridade /que segue os meus passos /no percurso /entre a vida possível /e a morte provável».
Contra a morte, está este canto lírico de um «Ser feito de mar» que lança ao mar todos os seus textos poéticos, para que o «sal e a luz» temperem as palavras. Também as razões são claras e assim enunciadas: «Nunca possuí um lugar a que chamasse /habitação permanente e onde o mar / me surpreendesse. Porque o mar é o berço /desta habitação, o lugar onde voo/ sem asas e onde escuto a tua voz». E «Tudo voa» nesta poesia que se problematiza a si mesma, cônscia até da fugacidade do traço na página: o «poeta é amador das palavras corroídas pelo tempo», a poesia «é simples passatempo», «Uma voz vazia, a da poesia» ou, ainda: «trago nada nas mãos / a não ser um livro de símbolos, /um manual de preces /e a voz sagrada do tempo /beijando-me as faces». É da voz do silêncio que aqui se fala e da capacidade do sujeito dar-nos a ouvir o que escuta, silêncio que é a casa do ser e do nada, sendo esse nada a plenitude do ser. O vazio é, afinal, o lugar do pleno. É esse silêncio iluminado que encontramos neste livro de poemas «como uma janela/ voltada para o sol» que inunda o mar, donde o sujeito «Invoca a terra, as aves e todos os animais perdidos na floresta», à sua semelhança, «embebe de sonhos a fragilidade dos seres, comete os sentidos/ na espuma do tempo», escuta e dá-nos a escutar a voz vigilante da memória na «zoada dos búzios», nas janelas que «desvelam/ os segredos na água» e o corpo da palavra, janelas que, na ânsia de horizonte, se rasgam em varandas que dão para o mar adejado de gaivotas, varandas a quem o sujeito pede que lhe devolvam «a luz e toda a poalha» do «azul profundo» e infinito.
«Entre um quadro e o infinito» há, pois, a luz que, ávida, traça as rotas de uma viagem vital, espargindo na brancura, da tela ou da página, cores incandescentes com que se pressentem silêncios: «As minhas cores /sobre a tela transpiram /as insónias dos pássaros». Na «senda dos limites», o sujeito detém-se na voz ilimitada de uma poesia habitada de asas: «porque é afinal para ti que corro /no limite da solidão», lê-se, solidão que se vai fundando em metáforas e hipálages. É preciso fixar a luz efémera das manhãs efémeras, a «luz deslumbrante /da claridade do mar», «luz estonteante» onde «aporta /o sussurro do mundo/ e a navegação silente», a luz que «madruga» os lábios, que «amornece» o corpo «absorvido no calor /de um imbondeiro», a luz que testemunha «o abraço à luz do dia /a uma almofada vazia», a luz que esclarece os contornos do corpo da palavra, a luz que consome as trevas e ilumina a ternura. No centro de toda a ternura estão as mãos. Elas retêm a febre e a luz, levedam o silêncio, «A polpa dos dedos /tacteia a pele da poesia», as palmeiras lêem e dedilham com facilidade a líquida e secreta mensagem, num grito de vida: «Sinto as fibras do meu corpo / a latejarem de poesia e /já não posso parar. Deixei /de comandar a minha mão. /Ela move-se por um impulso /azul que escorre, líquido, /nas páginas de um caderno /de notas.». A recolha da luz na página surge magnificentemente nos poemas narrativos dos pescadores na sua faina: «os pescadores lançaram as redes e recolheram / o mar dentro de um círculo amarelo. Nele escutei tua voz /que um pássaro inquieto / me trouxe até ao varandim /onde poisou num breve aceno /de asas e ternura. Entre ele / e o mar ficou apenas /a distância de um sopro.», e, ainda, «Os pescadores regressaram /com os seus círculos amarelos /e cercaram o mar. Depois,/ puxaram as redes e – com / elas – o mar para dentro dos/ seus barcos. E o mar, na sua/ tranquilidade líquida,/ deixou-se levar. As palmeiras /afagaram o suspiro /da ave que se aquietou /no topo de uma habitação./ O mar reconheceu-te /e prometeu enviar-te /a chuva na próxima estação.».
Na solidão desta poesia, reina o tu secreto – cuja ausência configura o vazio do sujeito, dá plasticidade e luminosidade à composição poética – que é voz, confidente, interlocutor, cúmplice e espelho do eu. A construção do tu é o resultado da «obsessão pela luz». Um tu que é sal, azul ou verde rutilante das esmeraldas, «zoada dos búzios», «razão de respirar» do sujeito. Ao tu, o sujeito pergunta «Escutas?», «Sentes?», e roga: «Espera serenamente a mensagem/ do silêncio […]/ deixa que a chuva /se torne a flor de sal /que alimentará a minha voz.»; um tu que ouve as perguntas e, em murmúrio sensual, impulsiona o canto inquieto e fortifica a morada almejada: «Entre um muro /branco rodeando a colina /sobre o mar e o caminho /das palmeiras e baobás /que envolvem as areias / na maresia, estás aí. /E é tudo o que preciso saber.».
Poesia corpórea, táctil, sensorial, com necessidade de ver, cheirar as flores e sentir-lhes a respiração – por isso «as flores pintadas numa tela» deixam de ser flores – , tem de questionar a relação com o divino: chama-se por um Deus «que chora como a humanidade», «hirto e humílimo, /como se fosse homem enjeitado /na sua própria mátria», um Deus cuja mão deveria ser de «humana matéria».
No «exercício implacável» da criação, as mãos desta poesia de experiências acumuladas pintam a paisagem, escrevem a temporalidade com o estilete da memória, preenchem a habitação transitória; «a ausência é contemplar, /à luz das manhãs /os muros brancos rasantes/ao mar onde a voz do Profeta/ se expande dos minaretes», e «o instante de contemplar/ desnuda a poesia». Munido de hipálages – «Neste mar senegalês /revejo a luz do mar /de Lisboa, ancorada /à solidão / no cais das colunas» –, o sujeito navega pelas próprias artérias navegando pelo mar interior da cidade de Lisboa, a «cidade das mil colinas», de «telhados/ pintalgados de gatos e pombos», com «varandins /de manjericos e lençóis /esvoaçando como bandeiras», «avenidas percorridas /à luz mortiça das tardes de chuva», «colinas onde as aves habitam», «perfil das gaivotas atiladas /no cais das colunas», acusa a incapacidade das palavras, dos símbolos não desenharem «o vento e as mãos /tecendo a lua /numa rua de Lisboa», e reage num gesto de evasão para o futuro: «tocaremos a poesia nos /miradouros» ou, ainda, «pela madrugada, voarei /na direcção do mar em busca da solidão.».
«voltarei um dia /para te buscar / entre os búzios», lê-se neste Habitações Interrompidas em versos que atingem o futuro deixando rastos do presente naqueles dias que virão. Resta-me dizer que o leitor da melhor poesia sempre aguarda o regresso da palavra desassossegadamente iluminada, como é esta de Francisco Duarte Azevedo.

Teresa Sá Couto
Lisboa, Julho de 2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Adeus de um homem livre: Manuel António Pina

Manuel António Pina, Prémio Camões 2011, partiu. Deixo a minha homenagem ao homem das letras e da cidadania.


O Tesouro é um hino à Revolução dos Cravos, um Tesouro duas vezes: por trazer para tão perto um país tão distante; por, com palavras claras e sábias, ensinar às crianças, e relembrar-nos a todos, o valor essencial à vida: a Liberdade – «A liberdade é como o ar que respiramos. Só quando nos falta, e sufocamos cheios de aflição, é que descobrimos que, sem ele, não podemos viver…».
O Tesouro é um
livro com um pássaro azul no seu interior, que se cumpre e se liberta em páginas mágicas, prodigamente ilustradas por Evelina Oliveira; quem detiver este Tesouro garante a imortalidade das asas.


 Contar aos mais novos uma história não inventada, a do seu país, Portugal, que outrora se chamou “País das Pessoas Tristes”, é possibilitar-lhes a inscrição da sua identidade e projectar-lhes a sua missão: «E o tesouro pertence-te a ti, és tu que agora tens que cuidar dele, guardando-o muito bem no fundo do teu coração para que ninguém to roube outra vez.». Para isso, explica-se o medo, a violentação do silêncio que nega o homem na sua existência social e pessoal, e o torna infeliz, solitário e triste: as «Pessoas falavam baixo como se um segredo terrível as amedrontasse.»; tinham até medo que «alguém pudesse ler os seus pensamentos e sair da sombra para os castigar por causa deles.».

São explicados os polícias por toda a parte, «não policias bons, que orientam o trânsito e prendem os ladrões, mas para vigiar as pessoas e impedir que elas falassem entre si; policias nas fronteiras para não as deixar sair; até policias que «abriam as suas cartas e ouviam as suas conversas para descobrir o que diziam e o que pensavam, e que as perseguiam e lhes batiam se elas não dissessem nem pensassem o que eles queriam que dissessem e que pensassem.».

Fala-se do destino minuciosamente traçado por homens poderosos que construíam a sua causa com desprezo pela causa de cada um: os meninos e as meninas só tinham acesso ao que não era proibido, não conviviam, e aprendiam em escolas separadas. Aos meninos esperava-os a guerra, onde eram obrigados a matar sem perceberem porquê.
Apresenta-se a felicidade, o dia em que se reconquistou o tesouro, que a gente de palmo e meio hoje tem, o dia em que se soltou o grito de "Viva a Liberdade", pois os «soldados arrancaram o tesouro das mãos dos ladrões».

As ilustrações compõem os tons do estertor psicológico, num jogo pictórico que desafia sensações; a coloração forte de um país luminoso contrasta com o negrume da fisionomia das almas e o interior sombrio, “sustido e clandestino”, das habitações. A cor retoma a pujança da alegria no final da história, com a ansiada Primavera, com a reconciliação do povo com as cores da pátria, com o júbilo da Liberdade resgatada. São páginas para as crianças desatarem os seus "porquês?" e para nós as ajudarmos a construir as suas respostas.

Este O Tesouro, de Manuel António Pina, teve a 1.ª edição em 1994, pela Associação 25 de Abril e pela APRIL, com o alto patrocínio do Presidente da República, o Dr. Mário Soares.
Em 1999, assinalando os 25 anos do 25 de Abril, O Tesouro deu origem ao filme Se a memória existe, de João Botelho, (selecção oficial da secção New Territories do Festival de Cinema de Veneza de 1999).



© Teresa Sá Couto

domingo, 30 de setembro de 2012

Revista Duas Margens

Está disponível on line o número 2 da imprescindível revista Duas Margens. Editada por Vítor Quelhas, José Guardado Moreira e Carlos Pessoa, a revista erige uma ponte que une o leitor à literatura. Conferir no endereço Duas Margens:

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Meditações Sobre o Fim

Este texto serviu de base à minha Apresentação Pública e foi editado no sítio da Orgia Literária.


Últimos poemas  

 
E se os poetas fossem chamados a cinzelar os últimos três poemas antes de morrerem? Ao desafio da nova editora hariemuj responderam 38 vozes que redigem, preto no branco, a sua conjura contra a morte. Juntando-se à plêiade dos conjurados, João Mota, que assina o grafismo de Meditações sobre o fim, esparge níveos lírios sobre a noite escura. O resultado é uma obra caudalosa, de águas profundas pejadas de ecos, a evidenciar que a palavra, no seu movimento perpétuo, é uma forma de enganar a morte pela sua emenda, a desafiar-nos para os versos de Herberto Hélder: «Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar // - a morte é passar, como rompendo uma palavra, /através da porta, /para uma nova palavra.».



(imagem da sessão da apresentação: da esquerda para a direita, João Mota, eu, Maria Quintans e André Gago)
 
A Antologia aloja desde autores nunca antes editados a autores com vasta obra publicada, vários níveis de qualidade literária, diferentes sentidos estéticos, diversidade que confere unidade à obra; é, aliás, em busca dessa unidade que segue este meu texto.
 
Talvez por observar a conspiração de vozes, a editora e poeta Maria Quintans refere, na abertura, que os poetas «fazem passeios pelo futuro». Com efeito, em Meditações sobre o fim versa-se o futuro, casa que a palavra quer habitar. Certamente por isto, e porque «as ideias do futuro estimulam-nos a vivificação, por isso todo o pressentimento é alegre», na formulação de Novalis, é raro encontrarmos o pungente e são banidos o macabro e o mórbido. Corre amor e morte na «tinta violeta» dos poemas de João Barrento, onde o eu poético, preparando-se para partir, se assume «sem nome /nem origem /no branco de lírio /da orgia /da despedida»; Casimiro de Brito menciona «a bagagem delicada que já se prepara /para outro salto - // a morte não existe.»; Pablo Xavier Pérez Lopes dá-nos um «Epitáfio Provisório», um epitáfio que é uma epígrafe, inscrição altaneira, estimulante e rebelde: «Aqui jaz um poeta esquecido/ escrevia como quem ama a morte»; Ricardo Tiago nomeia a morte como invenção: «quando me cruzar com a morte /vou saber inventar-lhe um poema /…/ e dizer todos os começos /que não soube explicar»; por sua vez, Joaquim Cardoso Dias acende a luz no «Quarto escuro»: «Tento acender outras imagens devoradas pelo tempo /E sei que é por tua causa /que esta noite existe e se repete /a vida inteira»; também sabendo que a missão do poeta é encontrar o que está escondido, iluminar os esconsos da alma, surgem, inundadas de ecos, as mãos azuis do poema de Bruno Béu: «a mão manifesta: /quando manifesta, esconde./…/ vinha pelo vitral , /o azul nas mãos /…/ e lá atrás /do som, do êxtase, vitral, da simetria /escondido, só um mesmo movimento /de um homem pequeno no fole.».
 
Na peugada da luz, surgem meditações sobre a efemeridade dos seres e das coisas, e nomeiam-se símbolos da corrosão: João Camilo especula sobre a passagem do tempo, «O carro funerário do tempo», o «comboio que pára em estações da memória», grita que «Não renunciamos à lucidez» e pergunta: «Quem, se pudesse, teria /preferido não viver? Quem, se pudesse?»; Duarte Braga aborda «os selos» do corpo rápido: a velhice, a doença, a morte; João Bosco da Silva ateia, à maneira de Pessoa, um “ensaio sobre o cansaço e a asfixia”, enquanto que Leila Andrade refere que «o grifo do tempo é inevitável». 
 
A luz capaz de mover consciências e as fazer actuar em cidadania é que o pede a inscrição de Nicolau Santos: a luz de uma grande razão para um país que se afunda na treva, que morra a morte actual, para que haja vida: «Falta-nos por aqui uma grande razão / como diria o Cesariny /…/ um motivo, um anseio /um desejo fortíssimo /um desígnio, uma visão /falta-nos um punhal brilhantíssimo /para liquidar esta vida de conformismo /de rotina sem ambição».
 
Ainda que noutra vertente, Joana Serrado também refere a morte necessária para que a vida aconteça: «as árvores que são abatidas para que o meu livro nasça».
A mostrar que somos água e que a lágrima humaniza-nos, Ana Hatheely apresenta três breves belíssimos poemas, numa corrente de três gerações:
 
I
A mãe que eu mal conheci
Não sei se era feia ou bela
Não me lembro dela.
Por isso quando morreu
Não tive de chorar por ela.
 
II
Quando a minha filha morreu
Chorei.
Chorei muito por ela.
 
Inutilmente.
Chorando não conseguia revivê-la.
 
III
Chora
Peço-te:
Chora por mim agora
Se eu morrer
Não sei quem por mim chora!
 
Com a história do corpo desagregado, experiências e estremecimentos, Benécdicte Houart refere que o poema é a verdade a permanecer e que há-de ser reclamada, o que se entronca no escrito por Jorge de Sena, no poema Cessação, onde se fala «no fim que não acaba», pois o poeta e a sua cantiga sonharão na treva, ideia construída com a imagem de um fósforo em que «faúlhas correm/ serenamente, até que um fumo sobe /e vago vai subindo e já não está /aonde o fogo foi e não existe».
 
Maria Sousa, com os versos «quando as palavras te morrem nos lábios /fica um hálito frio de poemas a ruir /na distância de um percurso traçado a pó», assume o carácter polinizador das palavras, e evidencia a transmigração, próximo do «voo, o meu pó será o que sou», de Jorge Luís Borges. É ainda neste sentido que encontro os versos de Inês Fonseca Santos: «cultivar sobre o asfalto uma palavra. /Deixá-la florir…». Finalmente, Filipa Leal detém-se na «suspensão do adeus», já que a palavra não diz adeus porque nela fica o coração, pois, e na expressão de Novalis, «O coração é a chave do mundo e da vida».
 
A editora hariemuj – palavra árabe, invertida, que significa alegria – traz-nos em meditações sobre a morte o júbilo da palavra, o primeiro grande argumento para lhe desejarmos uma longa vida.
 
 
Lista de autores presentes na antologia, AQUI.



© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Novo livro de Nuno Dempster

Já o disse e repito-o: não se pode falar de poesia portuguesa actual sem se nomear Nuno Dempster. Depois do imprescindível Pedro e Inês – Dolce Stil Nuovo, o poeta lança o Elegias de Cronos, dia 22 de Junho, pelas 21h30, na Soc. Instr. Guilherme Cosoul (Av. D. Carlos I, 61 - 1.º - Lisboa). A Apresentação é de António Carlos Cortez e o actor Miguel Santos dirá poemas do livro.



Deixo um dos 61 poemas do novo livro, com agradecimento ao autor:


Sem Fórmula

Passa do meio-dia e nada fiz.

Devia trabalhar no Excel

e cuidar de algarismos como ovelhas,

ser um pastor de números. Disse-te

somos inteligentes cegos,

cegos a vida toda,

a dar o nosso excesso sempre.

Era evidente que isso iria ter

um resultado triste.

Bem o sinto na urgência

de as palavras dizerem tudo.

Catarse vã: na folha de Excel,

os números reclamam-te

e não conheço fórmula que traga

pelo menos algum sossego,

pelo menos um anúncio funerário

na vitrina do meu barbeiro

a dizer que morremos ambos.


Elegias de Cronos / Leituras  Finais






*ver AQUI textos meus sobre obras de Nuno Dempster

magnólias de Albano Martins

A um mês de completar 82 anos, o poeta Albano Martins lança o «Estão agora floridas as magnólias».
Em breve, apresentar-vos-ei este livro, como sempre tenho feito com a obra de Albano.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Assírio&Alvim

A Assírio&Alvim acaba de inaugurar mais uma casa online.
Conferir, clicando na imagem, s.f.f.



quarta-feira, 7 de março de 2012

Voz cívica de Luís Norberto Lourenço

«A intervenção, a crítica construtiva, o inconformismo, são o sal da Democracia»; «O medo atrofia o pensamento e a acção. O medo limita, quando não mata, a criatividade, a crítica», escreveu Luís Norberto Lourenço, no texto titulado «Manifesto contra o medo», publicado na imprensa regional em 2001. Licenciado em História, professor, fundador da Casa Comum das Tertúlias, em 2004, em Castelo Branco, editor, incansável dinamizador cultural, Luís Norberto Lourenço publicou recentemente o livro Manifestos contra o medo: antologia de uma intervenção cívica, que será lançado na Biblioteca Municipal de Algés, a 10 de Março de 2012 pelas 18 horas, com apresentação de Luís Raposo, arqueólogo e Director do Museu Nacional de Arqueologia.

No livro, coligem-se artigos de opinião que o autor editou na imprensa escrita e na blogosfera, de 1995 até 2011. São textos de um homem livre comprometido com o seu tempo, gestos de quem vive Abril, escrita que plasma o pensamento do autor, os seus valores, com apelos, reptos à reflexão, incentivos à acção. É uma escrita lúcida, sem peias nem amarras, inteligente, inquiridora e dialogante.

Como bem refere Luís Raposo, no Prefácio, temos 215 páginas de «refrigério em tempo de banalidade, de falta de compromisso cívico». Os textos estão dispostos cronologicamente, a que se juntam textos inéditos que «ficaram na gaveta», assim dito pelo próprio Luís Norberto Lourenço, na Apresentação do tomo.

Os temas são variados, escolhidos em tudo o que assoma nos dias e deva ser destacado para se estabelecer o diálogo entre cidadãos. Entre outros, elogia-se o movimento cultural em Castelo Branco, pois «Devolvendo a cultura também se cumpre Abril», repudia-se a ausência de comemorações do 25 de Abril, em Castelo Branco, no ano 2000, recordando-se o que é celebrar Abril, ensejo para as questões «Quem tem medo de Abril? Temes que se lembre a defesa do serviço público, actualmente posto em causa em quase todos os campos? Temem que se lembre que há outra forma de fazer política?»; aventam-se propostas para «aperfeiçoar a democracia», o combate à pobreza e ao desequilíbrio social; aborda-se a desertificação do interior, o jornalismo em Portugal, o racismo, a violência, as interdições da Democracia e as novas censuras, a importância do voto, a questão do aborto, as alianças políticas; resgata-se a memória de Aristides de Sousa Mendes, desafia-se, com propostas, o poder político a evitar o olvido e invoca-se o exemplo do nosso cônsul desobediente a Salazar, em nome da humanidade.

«Serei revolucionário? É como me sinto cada vez mais», escreve Luís Norberto Lourenço. Por mim, direi que ele é uma voz que nos motiva e um exemplo de intervenção cívica que nos orgulha.

Ver, AQUI, outro registo dos passos de Luís Norberto Lourenço.

sábado, 3 de março de 2012

Ano Comum, Joaquim Pessoa

(Texto que serviu de base à Apresentação Pública, de 10 de Novembro último, em Lisboa, editado no sítio da Orgia Literária).

Ano Comum, de Joaquim Pessoa, não é um livro de poesia, embora contenha alguns textos em verso, muitos em prosa poética, e seja a poesia a raiz de todos eles; não é um Diário, não obstante a disposição diarística dos textos assumidos por um Eu que, fragmentariamente, se vai construindo num puzzle de interioridade. Como o título denuncia, Ano Comum é um tempo de encontro de um Eu que se confunde com um nós e se dirige a um tu, com palavras carregadas de vozes, sendo as suas 386 páginas brancas o lugar nítido onde a invenção acontece.

A matéria temática, o carácter dialógico, as estratégias da enunciação, a nitidez vocabular, que confere profundidade aos textos, são as chaves de Ano Comum.
«Subscrevo a chuva e as bibliotecas. Adoro o cheiro da terra e dos livros.», lê-se no Dia 333, onde se assume a «relação relação íntima e espiritual» entre «o cheiro da terra molhada» e a palavra, e se evidencia o caminho de quem vê e sente nas mãos a luz do real envolvente; falo da matéria vivencial depurada e transfigurada pela imaginação artística, de quem interpreta a realidade, quer compreender as coisas e, por esse entendimento, encontrar o seu lugar no mundo.

Na construção do caminho de luz, coopera a característica dialogal: a voz é objecto da escrita de um duplo do Eu, a voz do leitor implicado tacitamente no texto por quem segue na vida sentindo e interpretando o átomo que lhe pertence e que é o mesmo que pertence ao outro, desvendando a voz oculta, a lava subterrânea, procurando sempre «várias maneiras de chegar ao mar». Desde sempre, na obra de Joaquim Pessoa, a palavra diz mais do que diz, porque é a palavra de todos.
.
Esta característica dialogal da obra de Joaquim Pessoa entronca, estimulando e recebendo estímulo, noutra grande característica: movimento de procura da unidade, movimento que desagua em Ano Comum com 365 textos, correspondentes ao número de dias de um ano, e o título a declarar a unidade. Este movimento encontra-se na tessitura semântica, para prazer do texto, como queria Roland Barthes, na sintaxe simples e expurgada, onde o sensível se cruza com a fraternidade e onde, conceptualmente, o futuro habita, na variedade formal de textos, nas cadências vibrantes para sedução da leitura.
Sabendo-se que a luz do conhecimento só se alcança com amor, este tema executa-se, então, nesse grande movimento em direcção à unidade: «a casa do amor é uma lavandaria onde tornamos mais claros os olhos», lê-se no Dia 78, dito com toda a plenitude no Dia 51:

Invento hoje para ti este falso poema de amor egípcio: “A tua casa é o meu coração e o teu perfume enche de nostalgia as minhas noites. Pelos meus braços vens caminhando nua, com a doçura da gazela e a brevidade suicida das flores do hibisco. O meu coração dá abrigo a um grande amor, como a palmeira protege as tâmaras dos ventos do deserto ou a romã se transforma em cofre para guardar os seus rubis. Não há armadilhas montadas no percurso que te leva à minha cama, e nada será perturbado pelo júbilo de beijar todas as sílabas que a tua boca pronuncia. És em mim. Estás em mim. Há-de o meu coração ficar em ruínas e, assim mesmo, defenderá o teu corpo, a tua vontade, e o teu sorriso que tem a envergonhada cor da flor do lótus. Há-de o meu coração calar-se, mas esse silêncio não impedirá a promessa de uma eterna noite de amor."

Doutra parte, a interpelação desassossegada do mundo levada a cabo pelo Eu que irmana o leitor no seu olhar e na questionação das derivas que condicionam o homem na sua existência, instiga a escrita humanista e reivindicatória em torno de ideais de liberdade, fraternidade, solidariedade, que desafia à tomada de consciência, semente da actuação – com ressonâncias do poeta chileno de O Canto Geral, Pablo Neruda.

«Tens de levantar a cabeça do microscópio. Já chega de observar uma realidade minúscula que a simples utilização dos olhos não reconhece», lê-se no Dia 86 numa reacção contra os horizontes fechados e o consequente conformismo submisso.
Para que os olhos se impregnem de realidade, solta-se a palavra que denuncia a opressão – e é voz de oprimidos –, que reage contra a miséria, o «triunfo da mediocridade», a injustiça, o oportunismo, a hipocrisia, enformando textos lúcidos, crus, sarcásticos, irónicos, sonoros, como o do Dia 295:

No meu país de pachecos safam-se os parentes, os papalvos, os palermas. Perfilam-se os padres, perde-se o pudor, prefere-se o penacho, pede-se paciência, pinta-se o pior, publica-se o pastel, pertence-se à pandilha, perfila-se o partido, promove-se o pelintra. Perguntas-me: porquê? Porque no meu país de prados, pachecos e outros piolhos públicos, se permite toda a patetice, se promulga toda a pulhice, e se perdoa toda a porcaria. E pronto. Procuram pisar-te. Neste portugal dos pequeninos pagas portagem para tudo. Se pias, proíbem-te. Se não pagas, penhoram-te. Ah, pois!.

É, ainda, e sempre, a palavra de revolta, um canto de propagação da esperança e, neste sentido, um canto de amor: «Enquanto o melro cantar, tu sonharás. Os grandes pensamentos não estão ensopados de sangue nem se acomodam nas pilhas de dinheiro. A primeira palavra da noite é “dia” e a vigília é um preço justo pelo vento. […]», lê-se no Dia 99.
 
No alvoroço criativo do vento, o Eu dialoga com outros autores, que ele nomeia directamente nos textos, incorpora-os no seu mundo, procurando-se a si mesmo e desvelando-se nessa procura: «Como Walt Whitman, acredito que regressarei à Terra dentro de cinco mil anos. Ou talvez menos. Não receio afirmar isto. Ou será que as coisas que dizemos hoje nos podem perseguir amanhã? […] Como Éluard, quero entregar o meu coração ao vazio e o vazio à minha vida. E aprender como se sobe caindo, para morrer cheio de vida e partilhar essa vida com a morte […]» (Dia 54); «Montale diz que se tornou igual a um absorto pescador de enguias da ribeira. Eu sinto-me igual a Montale. Alguns milhares de pessoas sentem-se iguais a mim» (Dia 327); «Também eu amo os ácidos, os gumes e os ângulos agudos. Também eu caminho sangrando, ferido pela minha própria ironia, com a face de Deus perdoando as minhas lágrimas. Leio devagar as tuas palavras sem poder sequer aspirar à solidão.», lê-se no Dia 185, numa clara intimidade com Cesário Verde.
 
Concluindo, com retorno ao título, em Ano Comum, o Tempo é cifra aglutinadora – por isso recusa a «plataforma de um ano bissexto» – de vivências íntimas, desafios, desejos, ganhos, extravios e sonhos, num projecto vocabular comprometido com o futuro ou dito assim, no Dia 291: «Sou o teu coração e por isso te guio nesta floresta de palavras. O que nunca te disse não importa agora, está fora do meu manual de estratégia. Sim, porque só um coração possui uma estratégia do impossível e a memória agradecida de um mendigo. Vamos. O amor é uma grande viagem.» .

© Teresa Sá Couto

Ver o Posfácio a Ano Comum, AQUI

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Helder Moura Pereira: o peso das coisas

Desencanto, rebelião, melancolia, ironia são substantivos que nomeiam o Se as coisas não fossem o que são, último livro de Helder Moura Pereira , agora Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2011. O livro tem a chancela da Assírio &Alvim, editora que há já vários anos vem a editar o autor.

Voz poderosa da actual poesia portuguesa, Helder Moura Pereira traz-nos um livro de maturidade poética ancorada nas temáticas e nos processos que desde sempre lhe conhecemos: o poema faz eco da fragmentação dos dias e do sujeito poético, das ruínas, da «vida rasgada», descreve a «lareira apagada» (assim referido no A tua cara não me é estranha, livro de 2003), estabelece um diálogo vivo e eufórico com as coisas da vida e com a poesia, que é uma razão da vida. Se a palavra é a «amarga expressão de castigos, perdões, sorrisos» (em Segredos do reino animal, livro de 2007), em Se as coisas não fossem o que são, o sujeito poético assume que chegou «à chamada encruzilhada, /esse ponto em que só há caminhos /que não fazem parte do mapa.». Sábio, o poema mapeia aquela encruzilhada, a palavra remexe na terra molhada da memória - os «cérebros meus» enunciados no Lágrima, livro de 2002 -, perscruta a época em que havia esperança para dar conta do poder corrosivo do tempo sobre os sonhos, os desejos, os alentos, constatando-se, dramaticamente, que o antes passa de melodia a martelo que massacra a «alma estarrecida» do sujeito poético. Concomitantemente, a ironia acentua a decadência do sujeito poético e é um grito de revolta contra «a experiência do peso das coisas» que «rói o nosso último sinal carnal» (em Um Raio de Sol, livro de 2000).

«Vou escrevendo sem saber fazer de mim /um elemento», lê-se neste Se as coisas não fossem o que são, implicando o facto de o poema repetir o dia incerto do sujeito à deriva; será a «dor/ criativa da incerteza. E criar cria-se assim mas pode ser coisa horrível», conforme enunciado em Lágrima; tratar-se-á, ainda, e sobretudo, de «procurar na vida a dignidade do verso», tarefa que Helder Moura Pereira cumpre distintamente.

Dois extractos e um poema integral do Se as coisas não fossem o que são:

[…]
Pode ser tão triste o poeta sorridente.
Quando nos lê pautas de música
que tira dos bolsos. Escreve
pautas de música sem saber música.
E no meio de todo o silêncio
a tua cara afastada. Ainda se fosse
só a cara. Não há meio de me voltares
a dar corda. E eu não consigo revoltar-me
contra o meu coração ditador. Sempre
que me manda sofrer, eu obedeço. (p.p.17, 18)


***
[…]
Pense-se no instinto. Depois é só torcer a lógica
da direcção. É essa a atracção do meu amor.
Nunca perceberia nada. Da tua boca nunca ouvi
nada igual ou parecido. Isto era o que eu diria
ao meu amor se as coisas não fossem o que são.
Não era dia para grandes emoções e todavia o coração
é que sabia para que servia aquele dia. Sabia, logo
me dizia. Só eu o sentia, e tinha medo que alguém
me visse a sentir. Pensava que não era dia
para grandes emoções, mas era, dizia-me o coração.
Como já conheço este coração, sentei-me e fiquei
à espera, passei o dia num banco de jardim. (p.p.19,20)

***
assaltou-me a dúvida. Dei
o que tinha, que remédio, a dúvida
apontava-me uma pistola, que podia
ser de carnaval, mas também
podia não ser. E aí está
como a dúvida me levou
tudo. Socorri-me do amor, pedi
que me defendesse, mas o amor
fez orelhas moucas, o mais
que consegui foi que me deitasse
sortes, sortes que disseram
para eu contrariar a dúvida
com outra dúvida maior.
Doesse a quem doesse,
Furiosamente escrevi resmas
E resmas de papel, baptizei
A minha nova dúvida de verdade
(muito conveniente), e fiz
O pino, trocei de mim, fiz pouco
das outras verdades que fui
encontrando nos livros
à medida que quis conhecer
o conteúdo exacto de todas
as religiões e depois, com seca
frieza e decisão, abracei-me
à dúvida por uma ribanceira. (p.p.85,86)



© Teresa Sá Couto