domingo, 23 de dezembro de 2012

Três momentos da poesia europeia por Albano Martins

Está nas livrarias o belíssimo volume Três momentos da poesia europeia (De Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas), com selecção, tradução e notas de Albano Martins, publicado pelas Edições Afrontamento. Recordo que o poeta português e tradutor de poetas recebeu, no passado dia 12 de Dezembro, o Grande Prémio de Tradução Literária 2011, da Associação Portuguesa de Tradutores /Sociedade Portuguesa de Autores, pela tradução da Antologia da Poesia Grega Clássica, também com a chancela da Afrontamento. Noto, ainda, que a tradução do Canto Geral, de Pablo Neruda, publicado pela extinta Campo das Letras, em 1998, deu a Albano Martins, em 1999, o Grande Prémio de Tradução A.P.T. /Pen Clube Português e, pela tradução de sete obras do poeta chileno, o governo do Chile conferiu-lhe, em 2004, a Ordem de Mérito Docente e Cultural Gabriela Mistral, no grau de Grande Oficial.


(na imagem, Albano Martins na sua mesa de trabalho, fotografado por mim em Agosto último)

Na presente antologia, coligem-se dez poetas gregos arcaicos (Arquíloco, Álcman, Mimnermo, Alceu, Safo, Íbico, Anacreonte, Teógnis, Simónides, Píndaro), dez poetas italianos contemporâneos (Umberto Saba, Dino Campana, Vincenzo Cardarelli, Giuseppe Ungaretti, Eugenio Montale, Salvatore Quasimodo, Raffaele Carrieri, Sandro Penna, Cesare Pavese, Antonia Pozzi) e cinco poetas da geração espanhola de 27 (Pedro Salinas, Jorge Guillén, Gerardo Diego, Rafael Alberti, Manuel Altolaguirre). No final do livro, encontramos notas biográficas e bibliográficas de cada um dos poetas.


três poemas:

Não entendo a luta dos ventos. Rola
uma onda daqui, outra dali. E nós,
no meio, somos arrasados
com a escura nau, duramente
sacudidos pelo forte temporal. Já a vasa
cobre o pé do mastro, toda
a vela é rasgada e dela
pendem enormes farrapos. Os cabos
cedem, e o leme...
Firmo os pés nas enxárcias
e apenas isso me mantém são e salvo ...

Alceu, p.17

***
Não sei onde as gaivotas fazem o ninho,
onde encontram a paz.
Sou como elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
Como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.

Vincenzo Cardarelli, p.77

***

Enganou-se a pomba.
Enganava-se.


Ia para norte, foi para sul.
Julgou que o trigo era água.
Enganava-se.

Julgou que o mar era o céu;
a noite, a manhã.
Enganava-se.


Que as estrelas eram o orvalho;
o calor, a neve.
Enganava-se.


Que a tua saia era a tua blusa;
o teu coração, a sua casa.
Enganava-se.



(Ela adormeceu na orla;
Tu, no alto de um ramo).

Rafael Alberti, p.159



 Ver AQUI outras rubricas sobre Albano Martins.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Poesia de Francisco Duarte Azevedo

O livro de poesia As Habitações Interrompidas, de Francisco Duarte Azevedo, foi lançado no dia 27 de Novembro de 2012, no belíssimo Museu da Música, no Alto dos Moinhos, em Lisboa. O livro tem Prefácio meu e a Apresentação Pública esteve a meu cargo. É o texto do Prefácio que aqui vos deixo. Divulgarei oportunamente o texto que serviu de base à sessão do lançamento.
 
 
(na imagem, da esquerda para a direita: Francisco Duarte Azevedo, Teresa Adão - escritora e directora da editora  Edições Esgotadas - ,  Emília Noronha - Presidente da Junta de Freguesia do Alto dos Moinhos - e eu. A fotografia é de Paulo José Coelho, da editora Edições Esgotadas.)
 
 

Uma morada de sal e luz

 
é da palavra errante que
devemos falar, da distância
das coisas ou da cor do mar.

                        João Miguel Fernandes Jorge

 
 Diplomata de carreira, com a condição de errante pelo mundo, Francisco Duarte Azevedo busca na palavra literária uma habitação na habitação interrompida. O pequeno livro de poemas Os Ícones, de 1998, uma edição búlgara com o patrocínio e apoio da Associação dos Luso-Falantes na Bulgária, iniciava a catedral dessa demanda; o seu romance de estreia, O Trompete de Miles Davis, de 2011, talhava excertos de prosa poética fulgurante; neste Habitações Interrompidas, Francisco Duarte Azevedo regressa «à intempestiva forma caótica do silêncio», à água, «às linhas que atam / (como a chuva) / o corpo às algas do mar», ancora-se no sal da deriva e encontra refúgio na luz grande do mar.

«O espírito do pintor deve assemelhar-se a um espelho que adopta a cor dos objectos e se enche de quantas imagens tem diante de si», defende Leonardo da Vinci no Tratado de Pintura. Francisco Duarte Azevedo cruza a estética da poesia com a estética da pintura num canto que urde a existência interior do sujeito que «interpreta o mundo» e «luta contra as sombras/dos fantasmas, por uma habitação/não interrompida». A arte poética de Habitações Interrompidas carrega um trabalho apurado sobre a emoção e a memória, acto de buscar e conhecer, recorrendo a uma voz simbólica que interroga interrogando-se, a um olhar dinâmico que, como janela da alma e espelho do mundo, provoca, recolhe e deposita toda a matéria no corpo do poema, para que a memória sobreviva.

Como com a palavra, um quadro é feito de «pequenos nadas», pinta-se «com a argamassa /dos detalhes que preenchem /a vida», um quadro «Intervém», nele está o grito de liberdade dos emparedados, «os muros das habitações/transitórias», «os séculos da memória /e as histórias das aldeias /dizimadas», um quadro «denuncia o tempo /traz a memória nas mãos», «um quadro é ternura /banhada pelas manhãs /de luz», «É espaço rendido à leitura». Sobretudo, e sendo espaço de liberdade e de busca, «Um quadro é espaço vedado à morte» ou, dito ainda assim: «Procuro o meu ninho/ no aconchego/da brancura de uma tela.// […] uma simples cor pousada /como a pegada de ave /no reflexo das águas, /rasgam os sulcos por onde /seguirás na direcção do mar // Eis a claridade /que segue os meus passos /no percurso /entre a vida possível /e a morte provável».
Contra a morte, está este canto lírico de um «Ser feito de mar» que lança ao mar todos os seus textos poéticos, para que o «sal e a luz» temperem as palavras. Também as razões são claras e assim enunciadas: «Nunca possuí um lugar a que chamasse /habitação permanente e onde o mar / me surpreendesse. Porque o mar é o berço /desta habitação, o lugar onde voo/ sem asas e onde escuto a tua voz». E «Tudo voa» nesta poesia que se problematiza a si mesma, cônscia até da fugacidade do traço na página: o «poeta é amador das palavras corroídas pelo tempo», a poesia «é simples passatempo», «Uma voz vazia, a da poesia» ou, ainda: «trago nada nas mãos / a não ser um livro de símbolos, /um manual de preces /e a voz sagrada do tempo /beijando-me as faces». É da voz do silêncio que aqui se fala e da capacidade do sujeito dar-nos a ouvir o que escuta, silêncio que é a casa do ser e do nada, sendo esse nada a plenitude do ser. O vazio é, afinal, o lugar do pleno. É esse silêncio iluminado que encontramos neste livro de poemas «como uma janela/ voltada para o sol» que inunda o mar, donde o sujeito «Invoca a terra, as aves e todos os animais perdidos na floresta», à sua semelhança, «embebe de sonhos a fragilidade dos seres, comete os sentidos/ na espuma do tempo», escuta e dá-nos a escutar a voz vigilante da memória na «zoada dos búzios», nas janelas que «desvelam/ os segredos na água» e o corpo da palavra, janelas que, na ânsia de horizonte, se rasgam em varandas que dão para o mar adejado de gaivotas, varandas a quem o sujeito pede que lhe devolvam «a luz e toda a poalha» do «azul profundo» e infinito.
«Entre um quadro e o infinito» há, pois, a luz que, ávida, traça as rotas de uma viagem vital, espargindo na brancura, da tela ou da página, cores incandescentes com que se pressentem silêncios: «As minhas cores /sobre a tela transpiram /as insónias dos pássaros». Na «senda dos limites», o sujeito detém-se na voz ilimitada de uma poesia habitada de asas: «porque é afinal para ti que corro /no limite da solidão», lê-se, solidão que se vai fundando em metáforas e hipálages. É preciso fixar a luz efémera das manhãs efémeras, a «luz deslumbrante /da claridade do mar», «luz estonteante» onde «aporta /o sussurro do mundo/ e a navegação silente», a luz que «madruga» os lábios, que «amornece» o corpo «absorvido no calor /de um imbondeiro», a luz que testemunha «o abraço à luz do dia /a uma almofada vazia», a luz que esclarece os contornos do corpo da palavra, a luz que consome as trevas e ilumina a ternura. No centro de toda a ternura estão as mãos. Elas retêm a febre e a luz, levedam o silêncio, «A polpa dos dedos /tacteia a pele da poesia», as palmeiras lêem e dedilham com facilidade a líquida e secreta mensagem, num grito de vida: «Sinto as fibras do meu corpo / a latejarem de poesia e /já não posso parar. Deixei /de comandar a minha mão. /Ela move-se por um impulso /azul que escorre, líquido, /nas páginas de um caderno /de notas.». A recolha da luz na página surge magnificentemente nos poemas narrativos dos pescadores na sua faina: «os pescadores lançaram as redes e recolheram / o mar dentro de um círculo amarelo. Nele escutei tua voz /que um pássaro inquieto / me trouxe até ao varandim /onde poisou num breve aceno /de asas e ternura. Entre ele / e o mar ficou apenas /a distância de um sopro.», e, ainda, «Os pescadores regressaram /com os seus círculos amarelos /e cercaram o mar. Depois,/ puxaram as redes e – com / elas – o mar para dentro dos/ seus barcos. E o mar, na sua/ tranquilidade líquida,/ deixou-se levar. As palmeiras /afagaram o suspiro /da ave que se aquietou /no topo de uma habitação./ O mar reconheceu-te /e prometeu enviar-te /a chuva na próxima estação.».
Na solidão desta poesia, reina o tu secreto – cuja ausência configura o vazio do sujeito, dá plasticidade e luminosidade à composição poética – que é voz, confidente, interlocutor, cúmplice e espelho do eu. A construção do tu é o resultado da «obsessão pela luz». Um tu que é sal, azul ou verde rutilante das esmeraldas, «zoada dos búzios», «razão de respirar» do sujeito. Ao tu, o sujeito pergunta «Escutas?», «Sentes?», e roga: «Espera serenamente a mensagem/ do silêncio […]/ deixa que a chuva /se torne a flor de sal /que alimentará a minha voz.»; um tu que ouve as perguntas e, em murmúrio sensual, impulsiona o canto inquieto e fortifica a morada almejada: «Entre um muro /branco rodeando a colina /sobre o mar e o caminho /das palmeiras e baobás /que envolvem as areias / na maresia, estás aí. /E é tudo o que preciso saber.».
Poesia corpórea, táctil, sensorial, com necessidade de ver, cheirar as flores e sentir-lhes a respiração – por isso «as flores pintadas numa tela» deixam de ser flores – , tem de questionar a relação com o divino: chama-se por um Deus «que chora como a humanidade», «hirto e humílimo, /como se fosse homem enjeitado /na sua própria mátria», um Deus cuja mão deveria ser de «humana matéria».
No «exercício implacável» da criação, as mãos desta poesia de experiências acumuladas pintam a paisagem, escrevem a temporalidade com o estilete da memória, preenchem a habitação transitória; «a ausência é contemplar, /à luz das manhãs /os muros brancos rasantes/ao mar onde a voz do Profeta/ se expande dos minaretes», e «o instante de contemplar/ desnuda a poesia». Munido de hipálages – «Neste mar senegalês /revejo a luz do mar /de Lisboa, ancorada /à solidão / no cais das colunas» –, o sujeito navega pelas próprias artérias navegando pelo mar interior da cidade de Lisboa, a «cidade das mil colinas», de «telhados/ pintalgados de gatos e pombos», com «varandins /de manjericos e lençóis /esvoaçando como bandeiras», «avenidas percorridas /à luz mortiça das tardes de chuva», «colinas onde as aves habitam», «perfil das gaivotas atiladas /no cais das colunas», acusa a incapacidade das palavras, dos símbolos não desenharem «o vento e as mãos /tecendo a lua /numa rua de Lisboa», e reage num gesto de evasão para o futuro: «tocaremos a poesia nos /miradouros» ou, ainda, «pela madrugada, voarei /na direcção do mar em busca da solidão.».
«voltarei um dia /para te buscar / entre os búzios», lê-se neste Habitações Interrompidas em versos que atingem o futuro deixando rastos do presente naqueles dias que virão. Resta-me dizer que o leitor da melhor poesia sempre aguarda o regresso da palavra desassossegadamente iluminada, como é esta de Francisco Duarte Azevedo.

Teresa Sá Couto
Lisboa, Julho de 2012