sábado, 2 de fevereiro de 2013

Inútil dedicada à Morte

Disponibilizo aqui o meu texto que serviu de base à Apresentação pública da revista  Inútil, número quatro, que aconteceu na fnac do Chiado, em Lisboa, no passado dia 25 de Janeiro de 2013.

(imagem da capa e fotografia do interior, esta a duas páginas, de Rui Aguiar - clicar para aumentar)
 
A Morte

Detendo-nos na capa, divisamos os símbolos próprios de um percurso de iniciação: em fundo branco, uma porta branca, cor da lua (símbolo de morte e regeneração), uma porta fechada, como o luar é a tampa do sepulcro, na formulação de Teixeira de Pascoaes que diz, num poema, medir os anos, a sua idade, por metros de profundidade sepulcral, de lá «ergue-se, como espectro, inclina-se sobre ela para ver-lhe o fundo, sente vertigens e retira os olhos espantados». Este número 4 da revista Inútil propõe-nos um caminho iluminado pelos olhos espantados dos autores que nomeiam a morte, assim esconjurando-a. Espectros, principiemo-lo pelo fim, uma subtileza técnica, e também uma subversão, deste número que pretende escandir a morte escandindo a vida.

Sónia Baptista aponta-nos o chão que nos acolhe, a terra que «Não faz na morte distinção» entre os seres vivos, e fala-nos também da água, símbolo da vida, mas também do abismo: «Peixe vermelho /na água desafogado para cima /tornou-se salva vidas /boiou para baixo /encarnado”.

A nossa vida é uma dança de espelhos, porque eles dão-nos a terrível duplicação visual da realidade, a verdade de que a vida é também morte, e vemo-nos reflectidos nos esqueletos da ilustração da página 7; ouvimos, também, os sinos que, como relógios, marcam-nos as pulsações; ouvimos o ensinamento dos sinos de Edgar Allan Poe, o alarme dos sinos, o seu uivo, “carrilhões afinados” que marcam e regem o tempo com aprumo, interpretando o futuro, os sinos que “plangem aos finados”. Bénédicte Houart fala-nos de «espelhos caseiros», de sinos e do espírito dos mortos que nos habita: os espelhos com o seu hábito antigo de se estilhaçarem, «um ruído familiar» como outros que ouvimos no decorrer dos nossos dias: «O estilhaçamento regular dos espelhos. Compassando o tempo, como os sinos; não as horas ou as meias ou os quartos, mas o tempo que demora para que um rosto se componha e se desfaça, se recomponha e volte a desfazer-se. Isto é a vida. E os espelhos continuam esse trabalho bem depois da morte de quem neles se mirou, e se espantou, talvez, por existir.»; aludindo ao movimento que urde a vida, escreve Ricardo Tiago: «há dias em que morro /e a terra move-se. // nos dias em que há mortos /eu durmo / e a terra move-nos.»; na soberba fotografia de Rui Aguiar, ressoam, como sinos, as palavras de Herberto Helder: «Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta /no interior da terra. Somos / um reflexo dos mortos».
 
Transitoriedade, efemeridade, ilusão da vida estão metaforizadas ao longo de todo o compêndio, como na imagem do cadáver de um pássaro, de João Braz, no rosário de laborioso crochet de Paula Fernandes, na ilustração do quimérico banquete da vida, de Catarina Sobral, nas rendas e véus puídos do tempo desfeito, nas fotografias de Mami Pereira.
 
Afinal, “Tudo é soma na natureza humana.”, escreve Nuno Brito, e Casimiro de Brito invoca o Tudo da soma dos poucos com que se dissipa a vida: o Tudo é o Amor, porque nada mais fica. «Ama agora. Dou tudo, dou-me todo e não recuso nada.», lê-se. O motor que impulsiona o ser para o exterior será o coração , pois ele, na formulação de María Zambrano, “é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da vida”,  portanto uma “interioridade aberta” porque ao oferecer-se não é para sair de si, mas para levar para si tudo o que vagueia fora. As ilustrações de Rui Vitorino Santos evidenciam um corpo aberto pelo coração donde saem árvores; a ilustração de Sofia Morais traz-nos um homem de coração na mão mirando a sua sombra torturada ou, ainda, e finalmente,  o Tudo, o Amor eterno de Pedro e Inês no corpo arborescente de Ana Lacerda, da fotografia de Amir Filho.
 
Com fotografias e textos, André Gago, o convidado central, mostra-nos que a vida é a máscara da morte. Fixando os olhos nos olhos da morte, movido pela curiosidade «de ser até não ser», diz-nos André Gago: «Agarro-me muitas vezes à ilusão de estar vivo, porque as minhas mortes são devaneios. Nesses devaneios da morte, soletro os nomes amados, e acabo por me encontrar a salvo num rochoso pico de audiência íntima, num clímax de enredo que promete a sequela. Adio o desfecho, como quem quer escutar ainda o silêncio que sobrevém à paragem do relógio. Quero espreitar o mecanismo da morte por detrás do pano, porque sei que ela é puro teatro.».
 
«Cara senhora, és criminosa», escreve Maria Quintans à voluptuosa, altiva e inexorável senhora morte da fotografia de Edgar Keats. A reacção ao crime está patente nas ilustrações convulsivas de Bruno Corte, num mapa de tensões a fazer lembrar-nos os registos pulsionais de Henri Michaux, ou nas ilustrações de Joanna Latka, murais com olhos escancarados e bocas negras em corpos moles, bocas negras de silêncio à procura da palavra dura. A palavra suspende o tempo e, assim, preserva-o. É isto que nos diz Maria Quintans: «a palavra é uma folha nova de consciência quente na sofreguidão do desgosto até que caia em imagem.». Palavra confunde-se com “mãe”, a que “nunca se despede”, que nunca diz adeus.
 
Maria Quintans, Ana Lacerda e João Concha fazem da Inútil revista um objecto mágico de palavras e imagens; «mágico, poeta e maluco são palavras sinónimas», disse, e ainda, Teixeira de Pascoaes. Aqui confluem gerações de artistas, de estilos e sensibilidades diversas, e dá-se visibilidade a novos autores, (até se tira do anonimato a «Noite Escura» de um poeta encontrado ao acaso nas veias do Bairro Alto). Aqui gera-se oxigénio imprescindível para animar o asfixiado panorama cultural português.  
 
© Teresa Sá Couto