domingo, 22 de dezembro de 2013

As Duas Faces do Dia, de Dora Nunes Gago

Dora Nunes Gago vai lançar novo livro. Trata-se de uma novela que homenageia a malograda Florbela Espanca. Respondendo ao convite da autora, que muito me honrou, escrevi o brevíssimo prefácio. É esse texto que aqui publico, juntamente com o Convite oficial do lançamento da obra.


A voz na dobra do tempo


 Em vão corri mundos, não vos encontrei
 Por vales que fora, por eles voltei.

 António Nobre


Há seis anos, chegava-me por correio um pequeno livro de contos de um autor que desconhecia: Dora Nunes Gago. O título A Sul da Escrita e um golpe de olho ao interior das páginas prometiam histórias de referências históricas e pendor memoralista. A escrita delicada, despretensiosa e envolvente impôs a leitura de um fôlego, para uma experiência que perduraria até hoje, altura em que esta novela a restaura e enriquece. 
No «panteão espiritual» do sul vive agora a voluptuosa princesa desalento, mas Florbela Espanca não vem só: Dora Nunes Gago dá-lhe a opção do passo que ela não deu, do recomeço que ela não ousou, da liberdade que ela sempre quis.

Num puzzle de sintéticas analepses, apresenta-se a vida de duas mulheres, separadas 82 anos, Florbela e Brígida, enjauladas na existência: a uma pesam-lhe memórias de perdas, a outra procura memórias que perdeu, ambas ouvem os relógios ímpios, vigilantes e decisórios, ambas se debatem com o eco das suas identidades, porém enquanto Florbela fixa os olhos na tumular parede branca do quarto, Brígida fixa os olhos nos cortinados brancos, indiciador de destinos distintos. Para conseguir a admirável dramatização, Dora Nunes Gago faz com as suas personagens o que faz o actor: veste-lhes a pele, experiencia-lhes o bater de coração, as alegrias, os arrepios, as quimeras, os cansaços, os espantos, as dores, para que o leitor cheire o que elas cheiram, ouça o que elas ouvem, sinta o que elas sentem, veja o que elas vêem. Este fazer de laboratório é, pois, o responsável pelo intimismo com o leitor, e, consequentemente, pela adesão à leitura. Ainda neste laboratório da escrita, Dora Nunes Gago usa a linguagem de roteiro que dissemina pelo texto como um mapa, com linhas, superfícies, volumes, e a palavra desdobra-se enchendo os espaços com a brisa, o resmalhar do vento, os «rugidos do mar», o chicotear da chuva, o estrondear proceloso, a névoa que se solta dos cigarros, sombras, espectros, personagens bem definidas, e o leitor que, enredado nisto tudo, com o tudo se tatua, de uma tatuagem resistente e colorida. 


 Teresa Sá Couto
 Lisboa, 23 de Agosto de 2013



Texto meu sobre o livro A Sul da Escrita